“São 3 anos, 4 meses e 14 dias e nenhuma casa até hoje foi construída e nenhuma família foi indenizada. E a cada dia são direitos que são continuamente violados”, afirmou Mônica dos Santos na ONU em 19 de março. Ela era moradora do distrito de Bento Rodrigues, em Mariana, até o dia 5 de novembro de 2015. Sua casa foi completamente destruída, e ela perdeu tudo que possuía. Mônica continua: “Eu perdi o meu pai há 25 anos, e a única foto que tinha dele a lama levou. Para eu me lembrar da fisionomia do meu pai eu sempre olhava para essa foto, porque quando ele morreu eu tinha só 7 anos. Até hoje nenhum culpado foi punido. Principalmente para quem perdeu os familiares, esse é um dos pontos mais importantes: não vai trazer a pessoa de volta, mas não vai ser nem ser punido? Aí aconteceu de novo em Brumadinho, matou mais de 300 pessoas. Talvez se os culpados em Mariana tivessem sido punidos não teria acontecido de novo em Brumadinho”.
E aconteceu de novo. Brumadinho. Novamente um grande complexo de minério de ferro, no quadrilátero ferrífero de Minas Gerais, a região historicamente mais explorada pela mineração no estado. Cerca de 130 km ligam Mariana a Brumadinho. E esses dois crimes, que se convertem em tragédias humanas e ambientais, possuem alguns pontos em comum: novamente a mineradora Vale é responsável pelo empreendimento, novamente tratam-se de barragens úmidas de rejeitos a montante, o método mais barato de construção. Em Mariana foi a Samarco, que pertence à Vale e à BHP Billiton. E agora é o complexo Paraopeba, de propriedade da Vale desde o começo dos anos 2000. Mas o maior ponto em comum entre as duas situações é a dor.
“Eu vim falar sobre a perda do meu irmão, que morreu no crime da Vale. Ele era uma pessoa muito amada por nós, muito caridoso, cuidador da sua família, sempre estava pronto para ajudar a gente. A Vale não matou só ele, matou nós familiares também. Deixou esposa e dois filhos. A Vale levou embora um pedaço da gente também. A Vale também matou o nosso Rio Paraopeba, que era o nosso lugar de lazer, de pesca e até mesmo de sustento da minha casa, de onde a gente tirava o nosso alimento. Nosso rio agora chora lama, chora minério e chora sangue”, assim contou Izabel André, no mesmo dia 19 de março na sede de ONU em Genebra, num evento organizado pela Cáritas Internacional. Com o tema “O rompimento de barragens no Brasil e as subsequentes violações de Direitos Humanos” que aconteceu durante a 40° do Conselho de Direitos Humanos da ONU buscou traçar paralelos entre os dois casos mais destruidores que já envolveram rompimentos de barragens no Brasil: Mariana e Brumadinho.
É fundamental entendermos que o que aconteceu em Mariana e em Brumadinho não são acidentes, obras do acaso ou fatalidades. Mariana e Brumadinho são as consequências mais terríveis do modelo de mineração brasileiro, e que inclusive não se limitaram apenas ao estado de Minas Gerais: a lama de rejeitos do rompimento da barragem Fundão em Mariana percorreu mais de 600 km em Minas Gerais e no Espírito Santo, destruiu o Rio Doce, chegou até o oceano e já afeta o arquipélago de Abrolhos, na Bahia. E a lama de rejeitos da barragem da Vale que rompeu em Brumadinho matou o Rio Paraopeba, e ameaça outro Rio fundamental para o Brasil: o São Francisco.
Esse alcance comprova como este modelo que gera tantos impactos negativos nos locais onde são instalados também geram consequências em escalas muito muito mais amplas. Para a sessão paralela no Conselho de Direitos Humanos da ONU contamos também com uma representante da Bacia do Rio São Francisco, a Rafaela Alves, da coordenação nacional do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) que em conjunto com outras organizações estão articulando ações em proteção do São Francisco. No dia 25 de fevereiro, quando se completou 1 mês do crime em Brumadinho, os movimentos populares organizaram atividades, marchas, missas, atos ao longo de todo o rio. A bacia do Rio São Francisco é composta por cerca de 18 milhões de pessoas. São 505 municípios em 6 estados, uma população apreensiva em saber quais são os impactos que os rejeitos tóxicos da Vale poderão acarretar no São Francisco.
E que modelo é esse que causa tanta dor, apreensão, mortes e destruição? Que modelo é esse que destrói ou contamina os cursos d´água e nascentes em todas as partes que os projetos de mineração se instalam? Que modelo é esse que extrai o maior montante possível de minérios, no menor tempo possível, sem pensar nenhum projeto de país? Que modelo é esse que deixa o subemprego para a população local, no setor que tem um dos maiores índices do mundo de acidentes de trabalho, mutilações e mortes. No caso de Mariana e Brumadinho, o maior número de vítimas fatais foram justamente entre os trabalhadores das empresas mineradoras. Quais corpos são esses que são descartáveis? Parece que alguns corpos são mais descartáveis do que outros, na lógica deste modelo.
O que aconteceu em Mariana e Brumadinho não são acidentes. São crimes, cometidos pela mesma empresa: a Vale. E o estado de Minas Gerais e o próprio Estado Brasileiro que deveriam monitorar, fiscalizar, prevenir e proteger as populações destas situações? O Estado no Brasil é historicamente subordinado aos interesses das mineradoras privadas. O processo de licenciamento, concedido pelos governos, facilita a liberação dos projetos e não protege as populações locais dos riscos potenciais. E a fiscalização é débil, não garante controle do Estado sobre essas atividades. Como no caso do auto monitoramento: quem informa se uma barragem de rejeitos no Brasil está instável ou não é a própria empresa mineradora, que contrata uma consultoria, paga ela mesma este serviço, e informa os órgãos responsáveis. A barragem de Fundão, em Mariana; e a barragem B1, em Brumadinho possuíam, ambas, o laudo de estabilidade.
Este foi o tom do evento na sessão no Conselho de Direitos da ONU: denunciar a letargia do processo de Mariana, o novo crime cometido em Brumadinho e o modelo que tem causado repetidas situações como essas. Na delegação éramos quatro mulheres convidadas para falar na mesa da sessão da ONU. E isso é muito significativo da luta nos territórios em conflito com a mineração: em todas as partes do Brasil, as mulheres compõem a força motriz da resistência. Mulheres que sofrem, que lutam e que compõem poesias como esta, de autoria de Rafaela Alves:
É preciso caminhar
Com firmeza e esperança
Com o sonho de mudança
Nos movendo a cada passo
O horizonte da espaço
Há resistência, há rebeldia
Não ache que a burguesia
Nos venceu ou vencerá
A história seguirá
O povo nas grandes fileiras
Nossa luta é verdadeira
Nosso grito ecoará.
O povo vence quando luta
Organiza nas fileiras
Levanta ergue bandeira
Na marcha da resistência
Quando tem na consciência
O conhecimento da história
Quando lembra, tem memória
É passado, presente, futuro
Esperança rompe muro
Só a luta nos dá vitória.
*Maria Júlia Gomes Andrade é antropóloga e compõe a Coordenação Nacional do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM)
Edição: Joana Tavares