O dilema de agricultor em abandonar casa centenária onde nasceu e terra que era seu sustento
Helio Murta, de 72 anos, é descrito pelos moradores de Parque da Cachoeira (MG), em Brumadinho, como um dos que melhor conhecem a região. Nasceu e foi criado numa casa centenária à beira do Córrego do Feijão, onde vivia até duas semanas atrás, quando seu quintal foi tomado pela lama que vazou da barragem de rejeitos da Vale.
Ali, Helio plantava mandioca, cará, bananas. Também produzia mel e própolis, que vendia no centro da cidade. Agora, ele perdeu seu sustento para a lama, situação enfrentada por dezenas de agricultores da região.
Circulando por sua casa com a BBC News Brasil, ele mostra o que havia no local de valor material e, principalmente, afetivo.
“Esta casa é centenária”, diz ele, e leva a reportagem até uma porta de madeira com uma maçaneta de ferro que tem as iniciais LG, de Leopoldo Gomes, o engenheiro que vivia ali antes da família de Helio. Diante dela, à beira da lama, há uma jabuticabeira tão antiga quanto.
“Aqui, minha mãe ganhou seus 11 filhos”, diz ele, o mais novo dos irmãos. Hoje, quatro estão vivos
A história de sua família se mistura à do bairro, onde há ruas com os nomes de seus parentes. Seu avô comprou terras ali no início do século 20, quando a Estrada de Ferro Central do Brasil, que ligava Rio, São Paulo e Minas, chegou à região. A estação de Brumadinho foi aberta em 1917.
“A gente brincava de descer morro de carrinho, tudo a gente mesmo que construía”, conta Helio. “Meu pai tirava leite da vaca aqui e, às 6h, tinha que estar em Brumadinho para o trem levar tudo para Belo Horizonte. Estamos com o umbigo enterrado aqui. Sentimos muito ao ver o que era antes e o que veio depois.”
Um quintal de plantações – e memórias
“Isso aqui que você está vendo era tudo plantação”, diz o agricultor e apicultor, apontando para o quintal, hoje tomado pelos rejeitos.
Também há ali o que restou de uma casinha, onde a lama chega à metade da altura da parede. Era onde centrifugava o mel que produzia. “Tinha aqui uns 30 baldes de mel, vários vidros de própolis, embalagens. Tinha coisas de que nem lembro mais.”
Quem ensinou a ele e aos irmãos a técnica de apicultura foi a mãe, que a aprendeu na escola. Helio é aposentado, ganha pouco mais de um salário mínimo e tinha na apicultura um complemento de sua renda.
O quintal já teve várias funções para a família. Era onde seu pai curtia couro, e Helio e um irmão chegaram a ter um alambique. Desde criança, ajudava os pais com o trabalho nas plantações. “A gente sempre se alimentou do que plantava no terreno”, diz ele.
A tarde de pânico e a relação com a Vale
Até o rompimento da barragem, Helio não havia tido problemas com a Vale. “Eu era doido para ver como era lá dentro da mina. De um ponto alto, dava para ver a barragem. Era verdinha por cima. A princípio, não parecia que ia se desfazer”, diz ele.
Há menos de um ano, conta Helio, a empresa instalou sirenes no bairro, “mas não chegaram a explicar para a população para que serviria esse sistema de alarme”. No dia em que a barragem se desfez, as sirenes não soaram.
Quando ocorreu o rompimento, às 12h28, Helio estava em casa. Dali a mais ou menos 20 minutos a lama chegaria ao bairro.
Ele recebeu a ligação de um sobrinho que trabalha para uma empresa terceirizada da Vale. “Tio, você está onde?”, perguntou o rapaz. “Em casa”, respondeu Helio. “Então, sai daí agora que a barragem se rompeu”, disse o sobrinho.
Teve tempo de pegar documentos e a chave do carro. Do portão, já ouviu o barulho da avalanche, quebrando árvores pelo caminho.
Ao chegar num ponto mais alto da estrada, viu a lama levando carros, geladeiras, antenas parabólicas, restos de construções.
Um futuro incerto
Helio ainda não sabe onde vai morar, mas diz querer ficar no bairro. Autoridades disseram a ele que pagariam um aluguel na região. Foi instruído a tomar vacina de hepatite para evitar a contaminação pela lama.
A Vale o informou de que poderia voltar a morar naquela casa um dia, se quisesse, mas, para Helio, seria uma lembrança diária do que aconteceu.
“Quando abrir a janela da cozinha (que dá para onde ficava o Córrego do Feijão e onde está a lama hoje), vou ficar imaginando quem são as pessoas aí debaixo. Não quero isso, não. Mas acho que a gente tem que continuar a vida. A gente lamenta muito, mas a vida segue.”
Até a publicação desta reportagem, Helio não sabia o valor da indenização que receberia.
Procurada para comentar a situação dos agricultores da região, a Vale disse que faria uma doação no valor de R$ 50 mil para aqueles que moravam nos lugares onde a empresa previa que a lama chegaria, caso a barragem se rompesse, e de R$ 15 mil para aqueles que desenvolviam atividades produtivas ou comerciais ali.