Após 20 anos da privatização da Vale, a governança da empresa foi criticada por diversos acionistas. A Articulação Internacional das Atingidas e dos Atingidos pela Vale cobrou a recuperação integral da bacia do Rio Doce, dentre outras reivindicações
Há quase 20 anos, um leiloeiro batia o martelo e vendia a Companhia Vale do Rio Doce na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro. Nesta semana, na mesma cidade, o episódio voltou a ser lembrado pela Articulação Internacional das Atingidas e dos Atingidos pela Vale, que levou integrantes à assembleia anual de acionistas da mineradora. Usando uma estratégia de intervenção conhecida como “acionistas críticas”, cinco mulheres, de diferentes organizações e movimentos sociais que integram a Articulação, adquirem ações da empresa para poder denunciar, no interior do espaço corporativo, os prejuízos provocados pela Vale S.A. à sociedade. Elas votaram pela reprovação do relatório administrativo e reprovaram as demonstrações financeiras da empresa. Também defenderam que a totalidade do lucro da Vale, no último ano, seja destinada à recuperação da bacia do Rio Doce, curso d’água que, ironicamente, batizava a empresa no momento de sua privatização.
De acordo com a Articulação, a própria trajetória da empresa prova que a sua venda à iniciativa privada foi um mau negócio em diversos sentidos. Em sua sétima intervenção na assembleia, realizada na quinta-feira (20), suas representantes elencaram problemas econômicos, ambientais e de violações de direitos provocados por diferentes empreendimentos da Vale. Em meio à situação política do país, as “acionistas críticas” pautaram o tema da Previdência Social, assunto debatido no Congresso Nacional partir da PEC 287/2016. As mudanças no sistema previdenciário são defendidas com base em um suposto rombo das contas públicas.
Mas, segundo a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, pelo menos R$ 426 bilhões deixam de ser repassados por empresas privadas e públicas, fundações, bancos e governos estaduais e municipais ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). “Esse valor, que equivale a três vezes o chamado déficit da Previdência em 2016, não tem entrado na conta. A atual proposta de Reforma de Previdência Social ignora esse montante. E a Vale não está fora disso”, afirma Alexandra Montgomery, da Justiça Global. A Vale está entre as 35 empresas privadas que mais têm dívidas com a Previdência Social.
“A instabilidade política e a crise econômica são fatores de risco a serem considerado nos negócios. E neste cenário somos acometidos de um escândalo: somente a Vale deve aproximadamente R$275 milhões à Previdência. Proponho que esta dívida seja pega”, defendeu Alexandra. Ela também criticou a forma com que a empresa tem lidado com suas dívidas. “A Vale tem privilegiado o pagamento de dívidas de curto prazo em prejuízo das de longo prazo. A dívida líquida diminuiu ligeiramente de 2015 para 2016, porém o gasto com juros cresceu. Percebemos que a Vale tem optado por colocar à venda o seu patrimônio”, explicou.
Remunerações escandalosas
Mesmo endividada, a Vale prevê aumentar em quase 78% a remuneração de sua diretoria, fixando valor gasto em mais de R$161 milhões. Apenas o salário mensal do novo presidente da mineradora será de R$550 mil, segundo informações da própria corporação. A quantia equivale a mais de 500 vezes o valor do salário mínimo no país, hoje fixado em R$ 937. Englobando os bônus, a quantia recebida por ele pode chegar a R$12 milhões ao ano. “É inconcebível considerar este aumento frente aos sacrifícios que estão sendo impostos aos trabalhadores e às comunidades impactadas pela Vale. A empresa tem feito cortes constantes de custos de produção que ocasionam piores condições de trabalho, maior risco de desastres ambientais e sociais, aumento de acidentes, conflitos e impactos”, pontuou Michelle Farias, do Coletivo Margarida Alves.
As “acionistas críticas” refutaram a alegação de que as remunerações da diretoria da Vale seriam compatíveis com os valores pagos aos executivos de outras empresas de mesmo porte. “Devemos levar em conta a constante oscilação dos preços dos minérios, especialmente do minério de ferro, carro chefe da empresa”, destacou Michelle. Mas não só elas questionaram a governança da Vale. Outros acionistas, por motivos distintos, reclamaram da condução do processo da assembleia. De acordo com a Associação de Investidores no Mercado de Capitais (Amec), metade das procurações de acionistas estrangeiros foi impugnada, impedindo a participação desses na assembleia.
O tempo de fala de cada acionista para explanar seu voto também foi reduzido, passando de três para dois minutos, lembrando que em anos anteriores o tempo de explanação chegava a 5 minutos. Vários acionistas, inclusive os que defendiam interesses de mercado, fizeram queixas, deixando evidente que o processo da assembleia não agradou a maioria e não permitiu um espaço mais amplo para a participação dos seus acionistas minoritários, discurso utilizado pela Vale para legitimar o seu processo de pulverização de ações no mercado e diluição de controle Houve, ainda, demora na validação de procurações no início da assembleia, atrasando em duas horas as atividades. Esses pontos evidenciam como os espaços das Assembleias Gerais da empresa não permitem diálogo ou debate com seus acionistas, especialmente os minoritários.
A mineradora traçou etapas para conseguir pulverizar totalmente o seu controle até 2020, seguindo uma tendência ao ritmo do mercado financeiro. Para os defensores dessa visão, a Vale não teria sido ainda totalmente privatizada. “É necessário entender com mais profundidade essa questão e o significado da ascensão dos fundos de investimentos internacionais na estrutura da empresa, com perda do seu caráter nacional. Pode ocorrer, por exemplo, o deslocamento da sede da Vale para outro país”, problematizou Majú Silva, da Rede Justiça nos Trilhos.
Veias abertas em Minas Gerais
Essa é a sétima intervenção consecutiva da Articulação na assembleia. Assim como nos anos anteriores, o objetivo foi fazer um contraponto às informações do relatório anual da empresa. “Nesses documentos, a Vale passa uma imagem de uma empresa responsável, comprometida com a sociedade. Sempre traça cenários futuros positivos. Mas o episódio do rompimento da barragem em Minas Gerais mostrou ao mundo, da maneira mais dolorosa, o quanto é violenta a atuação da empresa”, afirma Ana Paula dos Santos, também da Rede Justiça nos Trilhos.
Já no final da assembleia, a empresa deu sua versão sobre como tem agido a Fundação Renova, que foi constituída para reparar os danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão, ocorrido no distrito de Bento Rodrigues, em Mariana (MG), em novembro de 2015. Essa entidade privada sem fins lucrativos foi criada em março de 2016 por um Termo de Transação e de Ajustamento de Conduta (TTAC) assinado pela Samarco e suas controladoras, a Vale e BHP Billiton, e pelos governos federal e dos estados de Minas Gerais e do Espírito Santo, dentre outros órgãos. Porém, a pedido do Ministério Público Federal (MPF), o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) anulou a homologação. O processo de elaboração do acordo, contudo, deixou de permitir a participação das atingidas e atingidos pelo rompimento da barragem, sendo assim prejudicial a essas populações, pois não representaria suas reais necessidades e poderia provocar ainda mais conflitos.
As “acionistas críticas” questionaram o relatório. “Os dados apresentados não contribuem para uma compreensão se de fato a atuação da Fundação está sendo efetiva. Por exemplo, disseram que ela está trabalhando junto a 300 agricultores familiares, mas não apontaram quantos trabalhadores e trabalhadoras rurais foram de fato atingidos. Desse forma, não temos como avaliar se o trabalho que está sendo feito corresponde à necessidade real provocada pelo rompimento da Barragem do Fundão”, contestou Carolina Moura, do Movimento pelas Serras e Águas de Minas (MovSam).
Outro tema levado pela Articulação à assembleia foi o alto consumo de água pela mineração. Só o setor responde por 51% dos conflitos de água no Brasil, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Carolina explanou em seu voto que empreendimentos da Vale, como a Jazida de Apolo, na Serra do Gandarela (MG), colocam em risco o potencial turístico do local, a produção de água para a região metropolitana de Belo Horizonte e a conservação da biodiversidade. “Claramente os riscos já são de conhecimento da empresa”, relatou. Ela também ressaltou que, dentre os impactos do rompimento da barragem do Samarco, “um dos mais violentos foi a contaminação de toda a bacia do Rio Doce”. “A mineração leva risco às reservas de água, colocando comunidades ou mesmo cidades inteiras sob o perigo do desabastecimento”, alertou.
Estrada de ferro e conflitos
O S11D, atualmente o maior projeto da empresa, também recebeu atenção. O empreendimento abriu uma nova mina no Pará e está duplicando a Estrada de Ferro Carajás (EFC), além de prever a ampliação do Porto Ponta da Madeira, em São Luís (MA). Sobre o tema, a empresa argumentou na assembleia que estão sendo tomadas medidas para evitar atropelamentos na Estrada. Disse que 20 pontos para travessia já foram instalados e que mais 20 estão previsto, a fim de garantir passagens seguras para pessoas e animais. Ana Paula, no entanto, afirmou que essas medidas não são efetivas, já que essas instalações não estão nos lugares indicados pelos moradores das comunidades impactadas pela ferrovia.
Em seu voto disse que, tendo em vista a atual duplicação da ferrovia, são necessários mais viadutos, passarelas e túneis para evitar atropelamentos e mortes. Destacou também que é importante investir em segurança do trabalho, redução de impactos nas fontes hídricas, diminuição de poluição sonora e do ar causadas pelos trens que transportam os minérios. Ana Paula aponta que as estratégias adotadas pela companhia não têm sido capazes de diminuir a “alto índice de conflitos entre a empresa e outros atores nos territórios”. Segundo informa a Rede Justiça nos Trilhos, ocorreram pelo menos 53 manifestações contra o S11D entre 2012 e 2015. “As medidas da empresa estão muito aquém das necessidades das populações impactadas”, analisa Ana Paula.
Desde 2009, a Articulação congrega diversos grupos, como sindicalistas, ambientalistas, organizações, associações de base comunitária, grupos religiosos e acadêmicos do Brasil, Argentina, Chile, Peru, Canadá, Moçambique, com o objetivo central de contribuir no fortalecimento das comunidades em rede, promovendo estratégias de enfrentamento aos impactos sociais e ambientais relacionados à mineração, sobretudo os vinculados à Vale. “Sempre apontamos que a empresa coloca, principalmente, populações pobres, negras e indígenas e outros povos tradicionais em risco, além de estar envolvida em inúmeros conflitos por água e território. Isso em nome do lucro. Na assembleia, também cobramos da mineradora o respeito ao direito das comunidades decidirem previamente sobre suas vidas, de forma livre e informada, como determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)”, concluiu Ana Paula.
Colaboraram: Daniela Fichino, da Justiça Global, e Maíra Mansur, Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale.