Campanha #EuExisto aponta que povos indígenas e quilombolas não foram ouvidos nos estudos de impacto ambiental do Projeto Serra da Serpentina, nova empreitada da Vale na região do Rio Doce
Quilombolas e indígenas apoiados pela Articulação dos Atingidos e Atingidas pela Vale (AIAAV) organizaram a campanha #EuExisto para denunciar os impactos socioambientais que poderão ser causados pelo projeto Serra da Serpentina, nova empreitada da Vale S.A. para explorar minério de ferro às margens do Rio Doce.
Se concretizado, o Projeto Serra da Serpentina irá impactar 51 comunidades tradicionais – entre as quais uma terra indígena, 12 territórios quilombolas certificados pela Fundação Cultural Palmares (FCP) e outros quatro em processo de delimitação pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).
No estudos de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) produzidos pela Vale os povos e comunidades tradicionais da região não foram considerados. A empresa não os consultou de forma prévia, livre, informada e de boa fé, como determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A consulta deve ser feita sempre que existam medidas legislativas, administrativas ou instalação de empreendimentos que possam afetar esses povos e comunidades. Os moradores locais temem que novas tragédias, como Mariana e Brumadinho, aconteçam.
O projeto Serra da Serpentina prevê 19 cavas, uma Unidade de Tratamento de Minerais (UTM), pilhas para a disposição de rejeito/estéril e um mineroduto com extensão de 115 km que transportará o minério até um terminal a ser construído no município de Nova Era para embarque na Estrada de Ferro Vitória a Minas (EFVM). Ao todo, 11 municípios da região do Vale do Rio Doce serão atingidos.
Além de não consultar as comunidades, os poucos impactos previstos no estudo não foram detalhadamente dimensionados nos estudos. Se alguma licença ambiental for concedida com base neste EIA/RIMA do Projeto Serra da Serpentina, que omite informações cruciais sobre danos e riscos, a violação da empresa será redobrada, pois terá assumido o risco de infligir sofrimento sobre corpos-territórios vivos e deliberadamente ignorados.
Campanha antecede assembleia de acionistas da Vale
A campanha #EuExisto foi lançada às vésperas da realização da Assembleia de Acionistas da Vale, que acontecerá no próximo dia 28 de abril, de maneira virtual. A Assembleia de Acionistas é uma obrigação legal anual da empresa, e é a mais importante assembleia das empresas de capital aberto, pois reúne seus acionistas para examinar as contas dos administradores, deliberar sobre as demonstrações financeiras por eles apresentadas e distribuir lucros. Nesta ocasião também são realizadas outras ações importantes, como a nomeação e destituição de administradores, alterações no contrato de sociedade, além de medidas estruturais, como operações financeiras ou de conversão.
Nessas ocasiões, a Vale nunca menciona os desastres socioambientais que promove nos territórios onde tem suas operações, nem os impactos que decorrem desses desastres e muito menos sua responsabilidade por eles.
O tempo todo a Vale emprega um discurso de produtividade atrelada à responsabilidade socioambiental, pois a “responsabilidade” – mesmo que seja apenas no discurso – garante uma imagem positiva perante os investidores, o que se reverte em mais investimentos para que a empresa continue operando e extraindo lucros à custa da morte de pessoas, florestas, animais e cursos d’água.
Acionistas críticos
Para garantir que as violações de direitos humanos e ambientais não sejam esquecidos durante a Assembleia de Acionistas, e que os crimes da empresa sejam conhecidos por quem os financia, a Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale vem, desde 2010, utilizando a tática de participação na assembleia por meio de acionistas críticos.
Um acionista crítico é alguém que, representando organizações ou coletivos da sociedade civil que fazem parte da AIAAV, compra ações da empresa e utiliza seu direito de voz e voto durante a assembleia geral anual da Vale para denunciar aos demais acionistas as violações de direitos humanos e ambientais e os crimes cometidos pela empresa.
Durante a assembleia, o acionista crítico também apresenta seu voto contrário às decisões corporativas que reforçam ou promovem estes crimes e violações. Tanto as denúncias quanto os votos contrários e suas justificativas são registrados em ata. Assim, a Vale e seus acionistas jamais poderão alegar desconhecimento sobre as violações de direitos e crimes cometidos pela transnacional.
Essa tática tem o objetivo de constranger diretamente os diretores e demais acionistas da companhia, confrontando seus planos e projetos a partir das contradições presentes nos relatórios e outros documentos informativos da empresa e o que ocorre nos territórios onde opera. Trata-se de expor as contradições dos discursos de “responsabilidade social” e “sustentabilidade” que a Vale alardeia a partir das evidências contrárias de sua prática nos territórios.
Na assembleia deste ano, um dos votos críticos a serem apresentados se refere ao Projeto Serra da Serpentina, à não consulta e aos graves impactos a povos e comunidades tradicionais que ele pode acarretar caso seja implementado.
Instrumento de denúncia relevante
Os votos lidos e protocolados nas assembleias de acionistas da Vale pela AIAAV têm se revelado instrumentos de denúncia relevantes no sentido de que a empresa não pode se furtar a considerá-los. Dessa forma, ignorar seu registro é um ato que tende a ser cobrado pelos demais acionistas, bem como pelos reguladores públicos de sua atividade. Nesses termos, o voto protocolado em 2018 referente à preocupação com a segurança das barragens de rejeitos da empresa se revelaria premonitório das condições de má gestão das operações de disposição de rejeitos de mineração por parte da corporação.
Importante ressaltar que a compra das ações pelos acionistas críticos não tem fins econômicos, e por isso não se confunde com a compra de ações pelos acionistas comuns. Enquanto para os acionistas é possível fazer negócios moralmente “bons” dentro da Vale, para os acionistas críticos não se trata de negócios.
Sobre o Projeto Serra da Serpentina
O Projeto Serra da Serpentina é planejado pela Vale S.A na bacia do rio Santo Antônio, onde nasce na Serra do Espinhaço, e faz parte da bacia do Rio Doce, atingida pelo rompimento da barragem da Samarco/Vale/BHP em Mariana em 2015.
Uma área de relevante valor ambiental e hídrico, de extrema importância biológica para a conservação de peixes, na qual ocorrem espécies endêmicas e ameaçadas de extinção. Trata-se de uma bacia hidrográfica fundamental para a recuperação do rio Doce. Nas cabeceiras dessa bacia estão os graves impactos do projeto minerário Minas-Rio, da Anglo American, que também tem um mineroduto.
A Área Diretamente Afetada (ADA) do Projeto Serra da Serpentina tem uma área de 9.560 hectares e abrange 11 municípios (Antônio Dias, Carmésia, Conceição do Mato Dentro, Dom Joaquim, Itambé do Mato Dentro, Morro do Pilar, Nova Era, Passabém, Santa Maria de Itabira, Santo Antônio do Rio Abaixo e São Sebastião do Rio Preto. Está prevista a supressão de 4.006 hectares de vegetação, boa parte dela nativa no bioma Mata Atlântica, pilhas de rejeito/estéril numa área de 2.358 hectares, geração de 1,1 bilhão de m3 de estéril e 510 milhões de m3 de rejeito.