Desinvestimento da Vale e atuação da Ternium reforçam violação de direitos

Em um território onde antes predominava uma vida pacata, com mobilidade, águas limpas, ar puro, atividade pesqueira e agricultura familiar, hoje prevalece o caos urbano, a contaminação e impossibilidade de uma produção de subsistência. É dessa forma que vivem os moradores do bairro de Santa Cruz, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, desde o início da instalação da Ternium Brasil, antiga TKCSA, em 2005. Um cenário de violações de direitos humanos e ambientais que também se repete em outros territórios explorados pela mineração, pela siderurgia e por outros modelos extrativistas.

E quando o lucro já não caminha mais para o esperado ou as atividades já não estão mais de acordo com os planos estratégicos da matriz, as empresas, especialmente as transnacionais como a TKCSA e a Vale, desfazem-se de ativos, como subsidiárias e outros negócios. Essa prática é chamada de “desinvestimento”.

Na operação, a empresa vende o ativo, e o dinheiro “desinvestido” e recebido na venda pode virar, por exemplo, investimento em outras aquisições, ou pode servir para pagar dívidas, reestruturar estratégias da empresa e outras possibilidades de utilização do recurso. Em seu site, a Vale apresenta uma lista de quase setenta desinvestimentos de 2010 a 2018, entre negócios de energia, logística, fertilizantes, cargas, exploração de carvão, cobre, níquel, manganês e outros.

De acordo com reportagem publicada pelo Valor Econômico, o desinvestimento começou a ganhar força com a crise dos Estados Unidos de 2009. “Na época, a prática de desfazer-se de ativos foi uma alternativa adotada para pagar dívidas e garantir capital para as empresas não afundarem. A lógica evoluiu e deixou de ser apenas uma ‘salva-vidas’ para situações extremas. Hoje, o desinvestimento é encarado como algo estratégico por executivos”, diz a matéria.

Ainda segundo a reportagem, uma das razões para isso é o entendimento das mudanças em perfis de consumo, modelos operacionais e novas tecnologias – que tornam o que fazia sentido no passado não ser mais uma necessidade ou até virar um risco no negócio.

Desinvestimento e impactos em Santa Cruz

Em 2016, a mineradora Vale vendeu ao grupo alemão Thyssenkrupp sua participação na Companhia Siderúrgica do Atlântico (CSA), que pertencia ao conglomerado TKCSA. Já nesse momento os moradores do bairro Santa Cruz ficavam sozinhos com os passivos – sempre ativos – deixados pela empresa. Em 2017, a TKCSA foi vendida à empresa ítalo-argentina Ternium. Pela segunda vez, Santa Cruz ficava só com os impactos acumulados da Vale e da TKCSA.

Se parece uma operação simples de compra e venda, o desinvestimento, em muitos casos, representa uma porta aberta para a agudização de violações de direitos socioambientais nos territórios onde as empresas “desinvestidas” estão instaladas. São inúmeras as denúncias feitas contra a Vale relatando os impactos que seus negócios poluentes e degradantes deixam ao longo de toda sua cadeia de operações e durante todo o tempo em que estas estão ativas. Na conta, a mineradora acumula desastres e crimes socioambientais, mortes, remoções forçadas, poluição irreversível de cursos d’água, destruição de modos de vida tradicionais, fome, doenças, perseguições, impactos e violências nunca mitigados e tão pouco reparados.

Quando a Vale “desinveste”, quem arca com os passivos que ela deixa para trás? O novo comprador alega que não é responsável pelo passivo deixado pela empresa vendedora. A Vale diz que, como já não é mais dona, não tem responsabilidade legal pelos passivos. E assim começa o jogo de empurra que exaure famílias impactadas em demandas, protestos e processos judiciais que duram anos.

No caso de Santa Cruz, a Vale é a principal operadora da linha férrea que parte das instalações da Ternium, além de fornecer minérios para a atividade siderúrgica. Portanto, a empresa tem responsabilidade direta pelos impactos ao meio ambiente, à saúde dos moradores, às moradias, aos modos de vida, à segurança, às atividades econômicas e em muitos outros aspectos.

“Quem sentiu primeiro foram os pescadores, agricultores e moradores da região. Então ficou muito difícil viver aqui e ter a esperança de continuar vivendo por mais dois, três anos”, lamenta Jaci, pescador que desde os 8 anos tirava seu sustento na Baía de Sepetiba, no Rio Guandu e no canal São Francisco. Após a instalação da siderúrgica, o pescado caiu em quantidade e qualidade, comprometendo a renda de centenas de famílias.

“Eu moro em São Fernando desde 1982 e eu nunca tinha visto alagar. Porque antes a água tinha por onde escoar. Quando o Guandu enche, a água não tem para onde ir e volta para nossas casas. Alagou várias vezes. Aliás, já alagou até em dia de sol. Basta o rio encher. A gente está nas casas, mas não está seguro. Mesmo com a obra [uma estação de tratamento de água], a gente ainda espera o tempo de chuvas com medo. E eles não admitem responsabilidade por nada”, conta Gilberto Nasif, de 56 anos.

Desinvestimento e violações em Moçambique

A prática de violações e “desinvestimento” promovida pela Vale em Santa Cruz também se repete em outros lugares onde a transnacional explora recursos minerais. Na cidade de Moatize, em Moçambique, a companhia tem “desinvestido” nas suas minas de carvão a céu aberto e omitindo informações sobre sua saída do país. Em março deste ano, a Vale foi intimada pelo Tribunal Administrativo da Cidade de Maputo a disponibilizar informações públicas solicitadas pela Ordem dos Advogados de Moçambique (OAM) a respeito das reparações devidas pela empresa às centenas de famílias que prejudicou e prejudica com suas atividades.

São inúmeras as demandas das comunidades que a empresa nunca atendeu, incluindo pedidos de reassentamento e indenizações. São centenas de pessoas que sofrem com a perda de suas casas, roças, cursos d’água, meios de vida e paz por conta da instalação e ampliação das minas e da ferrovia que cinde suas vidas. A Vale não responde às perguntas feitas por entidades que apoiam as pessoas impactadas, e por cima do secretismo, planta informações desencontradas sobre novos investimentos no setor e criação de empregos.

Karina Kato, professora adjunta do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, do Departamento de Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/DDAS/UFRRJ), alerta para a repetição de violações de direitos operadas pela Vale nos territórios onde realiza seus “desinvestimentos”. Além do caso da venda da sua parte da CSA à Thyssenkrupp, Kato lembra do encerramento das operações de ferroligas de manganês na cidade de Simões Filho, na Bahia, em 2020. Em seu site, a empresa informou, naquele ano, que adotaria “as medidas que estivessem ao seu alcance para minimizar os eventuais impactos da desmobilização.” O que ela deixou, porém, foi um legado de contaminação e problemas neurológicos aos moradores de Simões Filho.

“A empresa sai e esses passivos ficam como se fosse num limbo, ninguém se responsabiliza. O novo comprador fala que ele não fez isso, e a Vale, como já vendeu, diz que não é mais responsável. Então é importante a gente acompanhar esses desinvestimentos para entender como ficam os direitos de reparação das comunidades e trabalhadores, e ao mesmo tempo para lembrar a responsabilidade da Vale”, alerta Kato.

Renovação de licença

Em Santa Cruz, cinco anos após o desinvestimento da Vale na siderúrgica, os moradores seguem buscando pelas indenizações e lutando para permanecer sobrevivendo no bairro. Neste ano, a Ternium Brasil passará por um processo de pedido de renovação de sua Licença de Operação. Nesse contexto, foi lançada a Campanha “Licença pra quê?”, com o objetivo de questionar os impactos causados por um dos maiores complexos de siderurgia da América Latina, denunciar o descaso com a população desde a instalação e buscar do poder público a aplicação dos critérios para decidir sobre a licença.

A ação é uma iniciativa do Instituto PACS e do Coletivo Martha Trindade, em parceria com o Fórum de Mudanças Climáticas e Justiça Socioambiental (FMCJS), a Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale (AIAAV), a Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA), o Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), o Instituto Internacional Arayara e a Articulação de Agroecologia do Rio de Janeiro (AARJ).

Alex Hercog é jornalista, Karoline Kina é do Instituto PACS e Sabrina Felipe é da Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale.


Texto originalmente publicado no site do Le Monde Diplomatique Brasil

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