Anacleta Pires da Silva é orientada pela terra, de onde brota sua inspiração, força e sabedoria para travar lutas pelo bem-viver coletivo, pelo acesso aos territórios ancestrais em toda sua riqueza e diversidade.
Mulher preta quilombola, liderança plantada há 58 anos no Território Santa Rosa dos Pretos, na zona rural de Itapecuru-Mirim, Maranhão, Anacleta começou, ainda adolescente, a participar das lutas de movimentos sociais que reivindicam direitos dos povos pretos, indígenas e comunidades tradicionais.
Atuou intensamente na fundação de sindicatos, associações, entidades e movimentos. Ajudou a formular políticas públicas nacionais, estaduais e municipais de educação, saúde e acesso à terra e ao território. Foi professora primária e trabalhou na parte administrativa de prefeituras e fórum. É defensora popular de direitos humanos e ambientais, e por conta disso está, há quase três anos, inserida em programa de proteção de defensoras e defensores por conta de ameaças e perseguições.
Em 2009, aos 43 anos e mãe de quatro filhos, Anacleta foi cursar Pedagogia da Terra na Universidade Federal do Maranhão, no campus de Bacabal, a mais de quatro horas de distância de casa. “Quis animar a juventude de Santa Rosa dos Pretos a estudar”, ela diz. Iniciou a faculdade tendo a filha mais velha como sua colega de sala. Concluiu a graduação em 2017, aos 51 anos, com três dos quatro filhos se formando junto com ela.
Nas palavras que mais saem do seu coração – uma raiz que nasce na Guiné-Bissau e cruza o Atlântico até o Maranhão – estão os saberes que o chão do quilombo ensinou: o cuidado da terra, a partilha dos frutos e a cura de todo corpo, mente e coração que se afastam da natureza. “É preciso pisar o chão e ouvir a terra”, repete sempre a liderança, apontando onde nasce todo remédio, todo alívio, e todo caminho de volta pra casa.
O embate é parte da cura, e por isso, ao longo das últimas quatro décadas, Anacleta vem travando batalhas em trincheiras de diferentes chãos, seja o de órgãos públicos, o de universidades, igrejas, escolas, seja o do patriarcado e o do racismo estruturais.
No fim dos anos 1990, ela e outras lideranças de Santa Rosa dos Pretos fizeram inúmeras viagens à sede do Incra Maranhão, em São Luís, para exigir a titulação do território. Viajavam sem ter com o que pagar o transporte e nem o que comer pelo caminho. Para beber, apenas o chá de cadeira maldoso dos operadores de órgãos públicos comprometidos com a manutenção das estruturas coloniais. “A boca não tinha mais o que amargar de tanta fome. Tinham vezes que só o que a gente comia era os maracujazinho do mato que dava na beira da estrada”, relembra Anacleta. Ouviram muitos nãos, tiveram muitas portas fechadas na cara – “eles viam a gente e fechavam na hora” -, e outras sequer se abriram.
Mas às filhas e filhos da terra socorrem outros poderes e saberes, muito mais poderosos e sábios que os do papel do branco. Guiada pelos Encantados, a filha do Tambor de Mina foi tateando aqui e ali, acessando as pessoas certas, no tempo oportuno, até que os trâmites do processo de titulação foram se apresentando. O território foi certificado pela Fundação Cultural Palmares em 2005, e hoje está na fase final de titulação, restando ao Incra – com uma demora explicada apenas pelo racismo estrutural que orienta a questão fundiária no país – a obrigação de titular, definitivamente, as terras ancestrais ocupadas há mais de três séculos pelos quilombolas de Santa Rosa dos Pretos.
Nessa trajetória, uma miríade de desafios foi brotando por todos os lados. Em 2014, a mineradora Vale, que invadiu o território com a Estrada de Ferro Carajás (EFC), processou Anacleta e alguns parentes seus porque eles e mais de 500 outros quilombolas bloquearam os trilhos para exigir que a transnacional fosse transparente no processo de duplicação da ferrovia.
Foi também com o próprio corpo que ela e mais dois companheiros, em 2017, impediram a destruição do território por tratores enviados pelo governo federal, de maneira ilegal, para duplicar a BR 135, que também invadiu e cortou ao meio Santa Rosa dos Pretos. A obra segue embargada porque o governo violou e continua violando o direito fundamental dos quilombolas à consulta prévia, livre e informada.
No início desse ano, tendo o corpo, novamente, como única arma e proteção, Anacleta e outros moradores do território impediram a ação de grileiros que tentavam se apossar de grandes áreas do quilombo por meio da instalação ilegal de infraestrutura de energia.
Agora em março, a luta muda um pouco de figura. Não é hora de “correr mundo”, como costuma dizer Anacleta. É hora de voltar caminhando para dentro de si mesma, para dentro da casa primeira de todo ser vivente, de seu primeiro e mais elementar território: o próprio corpo.
Precisamente hoje, 8 de março de 2024, Dia Mundial de Luta das Mulheres, Anacleta iniciará tratamento oncológico no Hospital Aldenora Bello, na capital maranhense, para curar o câncer de mama diagnosticado em fins de fevereiro.
A rede de apoio e amor que se forma em torno dessa liderança é imensa. Em poucos dias de campanha de arrecadação para custeio de transporte, hospedagem, alimentação e medicamentos, Anacleta tem recebido, além de recursos, inúmeras manifestações de carinho e gratidão por seus anos de luta e acolhimento generoso de tantas pessoas e demandas.
E não poderia ser diferente. É da sabedoria da terra trazer os seus e as suas para perto das suas raízes.
Anacleta é raiz, e sua voz é o som que a terra produz.
* Se quiser colaborar com a campanha coletiva de apoio ao tratamento de Anacleta, contribua com qualquer valor:
Pix: 039.545.263.52 (Chave CPF)
Josiane do Espírito Santo Pires da Silva
Texto: Justiça nos Trilhos (JnT), Instituto Pacs, Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale (AIAAV), Justiça Global, Comitê em Defesa dos Territórios Atingidos pela Mineração, Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase).