Territórios livres de mineração existem. Apesar da intensa pressão do setor mineral sobre os poderes locais e nacionais, as experiências de luta por Território Livres de Mineração vêm consolidando um importante repertório de normas capazes de restringir, proibir ou responsabilizar as mineradoras. São experiências que rompem com o mito da “vocação mineral”, que impõe a todos os lugares onde existem minérios a obrigação de serem minerados.
Em maio, um conjunto de entidades e movimentos lançou um repositório online com materiais sobre esse assunto. São textos, artigos, encartes, produções audiovisuais, entre outros materiais disponibilizados de forma gratuita como ferramentas de fortalecimento das experiências dos territórios, e na promoção de pontes para o debate crítico à política mineral brasileira.
Esta é uma iniciativa importante, porque sabemos que diante do assédio das mineradoras, manter os territórios livres não é fácil.
No episódio número 13 do podcast Vozes Que Vale(m)!, nós conhecemos a experiência de pessoas do município de Santa Quitéria, no Ceará, que há anos lutam para impedir a exploração da maior mina de urânio e fosfato do país, capaz de gerar danos e impactos socioambientais sem precedentes.
Ameaça radioativa
Há mais de uma década, a jazida de Itataia, localizada na Serra do Machado, na caatinga cearense, vem sendo cobiçada por duas empresas: a estatal Indústrias Nucleares do Brasil, e a privada Fosfatados do Norte-Nordeste S/A. As duas formaram o Consórcio Santa Quitéria, e tentaram o licenciamento junto ao Ibama.
Em fevereiro de 2019, o órgão federal arquivou o processo de licenciamento por considerar o empreendimento ambientalmente inviável. Mas em meados de 2021, o consórcio entrou com novo pedido junto ao Ibama, reavivando as ameaças aos moradores da região.
Chamado de Projeto Santa Quitéria, o megaempreendimento conta com quase sessenta estruturas, e pretende produzir, anualmente, duas mil e trezentas toneladas de concentrado de urânio, mais de um milhão de toneladas de fertilizantes fosfatados e duzentos e vinte mil toneladas de fosfato. Os produtos servirão à produção de energia nuclear e insumos para o agronegócio.
Escassez hídrica e contaminação da vida
Os impactos são inúmeros e graves. Vão desde a escassez hídrica à contaminação generalizada das águas, do ar, da terra e dos corpos com material radioativo, afetando a saúde, a alimentação e os modos de vida da população que vive, em sua maioria, da agricultura familiar e da criação de animais.
Patrícia Gomes de Paula é moradora do Assentamento Queimadas, em Santa Quitéria. Ela conhece bem de perto os malefícios da exploração da mina. Nos anos setenta, seu pai foi um dos que trabalhou na escavação da jazida no período em que empresas sondavam o lugar em busca de urânio. A exposição a elementos radioativos foi fatal para sua saúde, e a de outros operários que trabalharam ali.
Além da contaminação das águas, o empreendimento também pode agravar a escassez hídrica na região, já que o projeto prevê a utilização de 855 metros cúbicos de água por hora retirados de um açude local chamado Edson Queiroz, que abastece o sertão central. Se o projeto for implementado, a demanda sobre o açude aumentará em mais de 400%, levando a um colapso desse sistema hídrico em um prazo de cinco a 10 anos, segundo Talita Furtado, advogada, professora e membro do grupo de pesquisa e extensão Núcleo TRAMAS – Trabalho, Meio Ambiente e Saúde, da Universidade Federal do Ceará.
Falta de consulta prévia, livre e informada
A Convenção 169 da OIT, a Organização Internacional do Trabalho, determina que povos e comunidades tradicionais sejam consultados de forma prévia, livre e informada sempre que uma decisão administrativa ou empreendimento possa impactá-los.
No entorno da jazida de Itataia e nas áreas de impacto do projeto existem mais de 150 localidades, povos indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais e assentamentos da reforma agrária. De acordo com Aroerê Tabajara, do povo Tabajara que vive na Terra Indígena Serra das Matas, nenhuma dessas comunidades foi ouvida nesses quase vinte anos em que as empresas lançam seus interesses sobre a região.
O estudo de impacto Ambiental apresentado em novembro de 2021 pelo consórcio ao Ibama não contempla os estudos dos componentes indígena e quilombola, destinados a avaliar os impactos a esses povos, não reconhece a existência dos povos e nega o direito à autodeterminação garantido pela consulta livre, prévia e informada. Dessa forma, o consórcio oculta as mazelas causadas pelo projeto durante os 20 anos que deve durar a exploração da mina, e mesmo depois, com o abandono dos passivos socioambientais e das pilhas de rejeito sobre os corpos das pessoas e seus territórios.
Resistência e construção de territórios livres de mineração
Para Patrícia e Aroerê, a união das comunidades e aldeias a movimentos, entidades e grupos acadêmicos é importante para garantir as informações necessárias à luta para manter o território livre de mineração.
Territórios livres de mineração existem porque são possíveis, e porque a vocação mineral é um mito que serve apenas às empresas e aos governos submissos a elas. A experiência de resistência ao projeto Santa Quitéria garantiu, por duas vezes, o arquivamento deste projeto, refletindo os impactos e as ilegalidades que lhe caracterizam. Desta vez, é preciso somar esforços e seguir denunciando os riscos que extração radioativa trará sobre a vida.
Acesse o repositório Territórios Livres de Mineração no site www.territorioslivres.org, uma realização da Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale, do Movimento pela Soberania Popular na Mineração, da Rede Brasileira de Justiça Ambiental e do Comitê Nacional em Defesa dos Territórios frente à Mineração.