EP.15 Governo de MG e mineradora SAM violam direitos do povo geraizeiro

O Estado de Minas Gerais tem duas manchas trágicas em sua história recente. As manchas têm a cor da lama das barragens de rejeitos da mineradora Vale que se romperam sobre milhões de vidas, humanas e não humanas. A primeira tragédia foi em Mariana, em 2015, com o rompimento da barragem do Fundão. A segunda, em Brumadinho, aconteceu em 2019, quando se rompeu a barragem B1, da mina do Córrego do Feijão.

Nos roteiros que tornaram possíveis esses dois crimes-tragédias repetem-se a irresponsabilidade da empresa em suas operações e a conivência do governo estadual, que está obrigado a regular e fiscalizar as atividades da mineradora, mas não o fez. Repetem-se os laudos e estudos inexistentes ou omissos – alguns até falsos – e o desdém da empresa e do governo pelos alertas feitos por universidades, movimentos e grupos que lutam pela defesa de direitos socioambientais. Repetem-se também dois elementos fundamentais desses crimes-tragédias: a falta de escuta das comunidades impactadas pela mineração e a atuação promíscua do governo mineiro, que usa as ferramentas públicas do estado para viabilizar a qualquer custo o lucro privado da empresa.

Como já ficou provado pela história, em Minas Gerais o roteiro dos crimes-tragédias se repete.

No episódio #15 do podcast Vozes que Vale(M)! nós ouvimos a liderança geraizeira Adair Pereira de Almeida, e a advogada Layza Queiroz Santos, do Coletivo Margarida Alves, sobre como o governo mineiro de Romeu Zema, do Novo, tem violado o direito de consulta dos povos geraizeiros de Vale das Cancelas, ao norte do estado, para viabilizar um megaempreendimento minerário da empresa de capital chinês Sul Americana de Metais, a SAM.

Geraizeira de Vale das Cancelas em seu quintal produtivo. Foto: Ingrid Barros

Projeto inviável

Há pelo menos uma década, a empresa SAM vem tentando implementar no coração do Cerrado um megaempreendimento de extração e exportação de minério de ferro, batizado de Bloco 8. O projeto conta com um mineroduto de quatrocentos e setenta e oito quilômetros que corta nove cidades de Minas e doze da Bahia até chegar em Ilhéus, e barragens de rejeito pelo menos 90 vezes maiores do que a que se rompeu em Brumadinho matando 272 pessoas e poluindo com metais pesados todo o rio Paraopeba.

O projeto vai impactar e eliminar o cerrado que é fonte de vida e identidade de cerca de duas mil famílias tradicionais geraizeiras, e será uma constante ameaça: as barragens de rejeito serão construídas a menos de dez quilômetros de algumas comunidades, o que é proibido pela lei Mar de Lama Nunca Mais.

Além disso, numa região semiárida e suscetível à desertificação, a SAM pretende matar cerca de 70 nascentes d’água para instalar seu empreendimento.

Por pelo menos duas vezes ao longo de dez anos, o projeto da SAM foi barrado pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente, o Ibama, por sua inviabilidade ambiental.

No entanto, como mostrou uma reportagem do site Intercept de janeiro desse ano, uma canetada do presidente do órgão federal, Eduardo Bim, liberou o empreendimento em 2019, e ele segue, agora carregado nos braços pelo governo Romeu Zema, para a fase de licenciamento.

A SAM e a Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento do governo de Minas Gerais, a Semad, têm violado o direito de consulta prévia, livre, informada e de boa fé dos geraizeiros. O direito internacional à consulta está previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, a OIT, e garante que qualquer ação administrativa ou projeto que impactem povos e comunidades tradicionais devem, antes da implementação, ser objeto de consulta a esses povos.

Resolução que viola direitos

Em abril desse ano, o governo Zema publicou uma resolução que procura regulamentar no estado o direito de consulta previsto na Convenção 169 da OIT. Uma nota técnica divulgada por grupos da sociedade civil pediu a revogação da resolução, que foi construída sem participação popular e é uma afronta a termos da própria convenção internacional.

As violações da SAM e do governo de Minas Gerais contra os geraizeiros de Vale das Cancelas compuseram um dos 15 casos julgados pelo Tribunal Permanente dos Povos em Defesa dos Territórios do Cerrado. No veredito do júri, divulgado no dia 10 de julho, a SAM e o governo mineiro foram condenados por sua responsabilidade partilhada, junto ao Estado brasileiro e ao atual Executivo Federal, pelo crime de ecocídio do cerrado e genocídio cultural de seus povos.

Por se tratar de um tribunal de opinião, as sentenças proferidas pelo júri deste tribunal não têm aplicação dentro do sistema jurídico formal do país em que é realizado. Ainda assim, as sentenças proferidas são de extrema importância para os sistemas de justiça nacionais e internacionais, e para a opinião pública de uma forma geral, uma vez que expõem os vazios e limites do sistema internacional de proteção dos Direitos Humanos e, assim, pressiona para sua evolução.

Localizado em região semi-árida do Cerrado mineiro, Vale das Cancelas pode ter mais de 70 nascentes de água eliminadas pela SAM. Foto: Ingrid Barros

Protocolo autônomo de consulta

De acordo com o site do Observatório de Protocolos Autônomos de Consulta, “a elaboração de protocolos comunitários é expressão de autonomia e autodeterminação dos povos, pois são criadas normas de relacionamento com a sociedade envolvente ou hegemônica de forma livre e autônoma.”

O Observatório também explica que “as experiências de protocolos autônomos no Brasil emergiram como resposta ao contexto de ameaça aos territórios indígenas, quilombolas e tradicionais, à omissão do Estado brasileiro em concretizar direitos fundamentais e coletivos dos povos e como alternativa a uma possível regulamentação geral dos procedimentos de consulta prévia no Brasil, rechaçada pelos movimentos e organizações de povos por representar possíveis restrições ao direito de consentimento e livre determinação.”

Desde 2019, os geraizeiros de Vale das Cancelas já estão em processo de construção de seus protocolos autônomos de consulta, como explica Adair Pereira de Almeida. A própria construção dos protocolos já coloca em prática o protagonismo das comunidades sobre a maneira como querem ser consultadas, com respeito ao seus costumes, valores e relações ancestrais com a terra e o território.

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