A organização Rede Justiça nos Trilhos (JnT) fará no dia 13 de agosto o lançamento virtual do relatório “Direitos Humanos e Empresas: a Vale S.A. e as estratégias de dominação, violações e conflitos envolvendo territórios, água, raça e gênero”.
O estudo faz parte do projeto “Empresas Transnacionais e Princípios Orientadores: em busca de mecanismos efetivos para a proteção de direitos humanos na América Latina”. E é realizado em uma parceria com as organizações internacionais Bienaventurados Los Pobres (Argentina), CooperAcción (Perú), Piensamiento e Accción Social (Colômbia) e Cospe (Itália). O projeto foi cofinanciado pela União Europeia.
Na primeira parte, o documento esboça um panorama das violações de Direitos Humanos cometidas por empresas contra indivíduos e comunidades. “No afã do lucro, as denominadas empresas transnacionais espalham-se pelos continentes em busca de locais mais vantajosos para suas atividades, em contextos de baixa normatividade em termos de proteção de direitos, com a consequente exposição de grupos vulneráveis a impactos potenciais”, diz o texto introdutório.
A partir daí, o relatório lança alguns questionamentos: “Como as dinâmicas de poder entre o Norte e o Sul globais interferem na problemática Direitos Humanos e empresas? A evolução normativa ocorrida na legislação internacional dos Direitos Humanos é suficiente para frente a arquitetura da impunidade existente? Há perspectiva de gênero nestas discussões?”
O documento afirma, que “ao contrário das suas vítimas, as empresas transnacionais contam com uma crescente ampliação de seus direitos e desfrutam de controles normativos extremamente frágeis”. E denuncia a chantagem praticada por instituições internacionais sobre os Estados empobrecidos para a aplicação de agendas econômicas de recorte ultraliberal.
Governo Bolsonaro e o agravamento das violações aos Direitos Humanos
O relatório destaca o resultado das eleições de 2018 como um ponto de agravamento das violações de Direitos Humanos no Brasil. “Eleito em novembro de 2018, o presidente Jair Bolsonaro implementou medidas que colocam em risco os Direitos Humanos, o que gerou críticas internas e no mundo todo”, afirma o texto.
Como exemplo concreto, o relatório cita a Medida Provisória 870, de 1º de janeiro de 2019, que significou o esvaziamento dos órgãos de controle vinculados ao Ministério do Meio ambiente. De acordo com a MP, o Serviço Florestal Brasileiro; os Departamentos de Políticas em Mudanças do Clima, de Florestas e de Combate ao Desmatamento; assim como o de Monitoramento, Apoio e Fomento de Ações em Mudanças do Clima passaram para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. “Não se trata apenas de mudanças de nomenclatura. Não há mais nenhuma citação a mudanças do clima ou ao combate ao desmatamento no novo organograma dos ministérios”, atesta.
Especialmente sobre o tema da mineração, o relatório destaca o anúncio feito pelo ministro de Minas e Energia, o Almirante Bento Albuquerque, de que abriria as terras indígenas para a exploração de minérios, durante o Prospectors and Developers Association of Canada (PDAC), em Toronto, Canadá, um dos maiores eventos globais do setor.
Capa do relatório “Direitos Humanos e Empresas: a Vale S.A.
e as estratégias de dominação, violações e conflitos
envolvendo territórios, água, raça e gênero”
A Vale e os crimes mundialmente conhecidos
O documento lançado pela Justiça nos Trilhos (JnT) afirma que as políticas públicas em vigor, tanto no âmbito federal quanto nas esferas estaduais, “dialogam” com os crimes cometidos pela mineradora Vale S.A., especialmente em Minas Gerais, como o caso de Brumadinho, ocorrido em 2019.
“Isso porque a exploração mineral segue padrões e normas previstos pelo poder público e por agências reguladoras, como a ANM (Agência Nacional de Mineração). Essas ações integram a política ambiental e de fiscalização do país, a qual o governo Bolsonaro prometeu flexibilizar durante e depois da campanha eleitoral a fim de promover desenvolvimento econômico”, pontua.
No contexto da Amazônia, o relatório aponta que a Vale “é protagonista de alterações irreversíveis no ambiente amazônico e nas vivências dos povos que lá residem, em especial nos corpos e vidas das mulheres, sendo responsável por graves violações de Direitos Humanos e conflitos socioambientais e como expressão do confronto de lógicas diferenciadas de ocupação e uso de territórios e recursos”.
De acordo com o documento, não há como dissociar as práticas de violações de direitos à lógica que impera no setor da mineração, com a conivência das leis e dos agentes públicos de poder. E alerta para as consequências dramáticas do ponto de vista social e ambiental desse modelo.
“O setor da mineração corresponde a quase 5% do PIB brasileiro. Deste total, no último ano, 44% foi do minério de ferro, que em 2018 cresceu 25,4% em relação a 2017, conforme dados da Secretaria de Comércio Exterior. Levando-se em consideração somente tais porcentagens, poderia se concluir que a mineração é um setor essencial à economia e ao desenvolvimento do Brasil. Todavia, a extração desenfreada dos recursos, visando somente o lucro e o aumento da produtividade para exportação, levando ao agravamento das condições de vida das populações afetadas pelas atividades empresariais, pauta-se por um modelo de desenvolvimento pautado na desigualdade e na devastação ambiental, e totalmente insustentável a longo prazo”.
Conflitos
O relatório “Direitos Humanos e Empresas: a Vale S.A. e as estratégias de dominação, violações e conflitos envolvendo territórios, água, raça e gênero” chama a atenção para o aumento dos conflitos e mortes vinculados à defesa dos territórios frente a atuação das empresas. O documento menciona o monitoramento realizado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), que aponta a mineração como um dos principais causadores de conflitos. “A CPT monitora os conflitos pela água desde o ano de 2002 e seus últimos levantamentos foram de 2017, que aparece como o ano mais violento. A análise dos números permite concluir que entre os anos de 2015 e 2017 o aumento da violência foi superior a 100% em relação a todo o período anterior”.
Segundo o relatório, as pressões econômicas sobre os territórios não impactam somente os modos de vida, mas “colocam em risco a própria sobrevivência” das comunidades atingidas, já que os empreendimentos minerários impactam também o acesso a recursos essenciais, como a água, o que por sua vez impacta muito fortemente a saúde dessas populações, com especial atenção para as mulheres.
Casos concretos
O primeiro caso concreto analisado pelo relatório é o da Comunidade Quilombola Santa Rosa dos Pretos, situada às margens da rodovia BR 135, no município de Itapecuru-Mirim, no Maranhão. Segundo o documento, o território sofre com os impactos de dois empreendimentos de infraestrutura na região, o que tem elevado os casos de conflitos e violações de direitos.
“De acordo com a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Quilombolas, o ano de 2017 foi o mais violento dos últimos 10 anos para as comunidades quilombolas de todo o país, e o crescimento de assassinatos, de 2016 para 2017, foi de 350%. O Maranhão foi o estado com o 2º maior número de assassinatos, o que expõe mulheres e homens de Santa Rosa a um risco potencial”, destaca.
O relatório destaca ainda os diversos relatos de racismo religioso, cultural e ambiental, além do racismo institucional praticado por empresas, “órgãos públicos e poderes executivo e judicial”. O documento denuncia que “até o último censo do IBGE, sequer existia o indicador atinente à identidade quilombola, o que prejudica sensivelmente a elaboração e implementação de políticas específicas”. De acordo com o texto, “atualmente o Instituto realiza testes-piloto com questão de pertencimento específica a essas populações, visando sua aplicação ampla no próximo censo demográfico”.
Outra situação analisada no estudo é Piquiá de Baixo, localizada no município de Açailândia, também no Maranhão. Segundo o relatório, a comunidade de pouco mais de mil habitantes sofre “cotidianamente com a poluição do ar, da água, do solo e a poluição sonora de empresas siderúrgicas que se instalaram ao redor das casas a partir do final dos anos 1980”.
O texto denuncia que as indústrias de ferro-gusa, entre elas a Vale, “não estão cumprindo com as normas ambientais”. “Apesar de requisições realizadas pelo Ministério Público e pela Associação Comunitária dos Moradores do Piquiá (ACMP), as devidas fiscalizações e o monitoramento do funcionamento das empresas não vêm sendo realizados”, afirma.
A falta de controle ambiental das operações siderúrgicas na região também é motivo de preocupação dos moradores e organizações de defesa dos Direitos Humanos. O relatório denuncia que o “principal rio que passa pela comunidade, o Rio Piquiá recebe, desde a década de 1980, a água utilizada pelas siderúrgicas para os processos de lavagem e resfriamento do ferro. Essa água é descartada no rio sem nenhum tipo de tratamento, a uma temperatura de 37º C e com presença de resíduos tóxicos”.
A situação de Piquiá de Baixo já foi, em outros momentos, objeto de denúncia da Federação Internacional dos Direitos Humanos e da própria Rede Justiça nos Trilhos (JnT). As afetações nas comunidades já são visíveis do ponto de vista da saúde pública, segundo o relatório. “Doenças pulmonares, de pele, nos olhos e outras aumentam a cada ano. Crianças são vítimas da ‘munha’, uma espécie de pó residual incandescente que é depositado pelos caminhões das siderúrgicas próximo das casas. As crianças são as principais vítimas, inclusive com caso de morte”.
Finalmente, o relatório destaca o agravamento das violações de direitos para as mulheres.
“Na maioria dos casos, as mulheres não são titulares da propriedade da terra, o que faz com que suas necessidades, problemas e interesses acabam não considerados pelas empresas transnacionais. No meio campesino, o acesso e titularidade das terras liga-se diretamente à ideia de autonomia. Enquanto a empresa nega às mulheres efetiva participação em processos decisórios, dentro da comunidade aciona as mulheres e desenvolve com elas uma relação clientelar, baseada em benefícios como cisternas, hortas e promessas de banheiros secos, visando gerar uma ideia de benevolência, porém sem reparação real pelos danos causados com a morte dos cursos d’água, os prejuízos para a segurança alimentar, o isolamento das pessoas, etc.. Nem de longe as mulheres são pensadas como beneficiárias diretas dos recursos naturais explorados e degradados”.
Nesse sentido, o relatório apresenta alguns relatos de mulheres atingidas em seus territórios pela atuação das empresas.
“Há uma diferença que é especial para mulheres. Meus sete filhos e meu marido já foram embora. Minha filha não vem porque fica com medo. A ferrovia aumentou a bandidagem. Já fui assaltada. Meu irmão também” afirma a moradora de Mutum II, no município de Arari (MA), outra comunidade estudada pelo relatório da JnT, com especial foco nas questões de gênero.
“As mulheres de Mutum II têm sido garantidoras da vida em seus territórios, preservando a biodiversidade animal e vegetal. Assim, o reconhecimento de suas histórias e sua inestimável contribuição para a garantia da vida as fazem gozar de legitimidade suficiente para exigirem respeito às suas vidas e aos seus direitos, ao direito de decidir sobre seus futuros, suas famílias, seus territórios e as formas de reparação a qual fazem jus. O necessário enfoque de gênero traz à tona as desvantagens e desigualdades que são impostas às mulheres em razão de sua condição de gênero, classe e raça, no entendimento que papéis e direitos desiguais são o resultado da construção social do ser mulher na sociedade”, diz um trecho do relatório.
Alguns relatos, dão conta de como a chegada da exploração mineral na região, além da contaminação de rios, igarapés, provocou ao longo dos anos a destruição dos modos de vida e de espaços produtivos da comunidade.
“A Vale trouxe várias coisas. Todas ruins para as famílias, meninos e mulheres. Idosos também. Ela destruiu muitas coisas das pessoas, como roças. A roça do meu pai foi destruída. Os animais também foram destruídos. A Vale também destrói as pessoas. A ‘areia’ (pó de minério), também destrói as pessoas porque entra nas casas. A Vale diz que ajuda, mas não ajuda ninguém, só destrói. E tudo isso traz vários sentimentos, pois a empresa ataiou o caminho, fora muitas outras coisas. E tudo isso não é apenas em Mutum II”, afirma o morador da Comunidade Mutum II.
“Hoje a gente não pode mais nem colocar o pé na ferrovia, que já somos processados. Quando o pessoal da Vale pergunta o nome das pessoas, essas, inocentes, informam, sem saber que é pra serem processadas”, diz outro.
Conclusões e recomendações
O relatório afirma que as diversas violações analisadas “apontam para o que o Direito Internacional de Direitos Humanos chama de ‘padrões de violações’, que, em dinâmica semelhante, acontece quando a operação da empresa é marcada pela destruição do meio ambiente em curto período de tempo, com contaminação das águas com metais pesados, o assoreamento de igarapés, prejuízos na oferta de alimentos e expropriação dos territórios”.
Diante do cenário exposto, as organizações responsáveis pelo relatório apontam 25 recomendações a serem observadas tanto pelo Estado brasileiro e outros Estados com realidades semelhantes de violações de direitos, como pelas empresas causadoras de tais violações.
Não perca a live de lançamento do relatório “Direitos Humanos e Empresas: a Vale S.A. e as estratégias de dominação, violações e conflitos envolvendo territórios, água, raça e gênero”
Quando? Quinta-feira, 13 de Agosto
Onde? Na página da JnT no YouTube e na página da AIAAV no Facebook