“O atual governo assumiu o Brasil em uma profunda crise ética, moral e econômica. Quis o destino que, no início do mandato do presidente Bolsonaro, sofrêssemos um novo e doloroso choque com o rompimento de outra barragem de rejeitos, cujos resultados desastrosos comoveram e abalaram a todos os brasileiros e a comunidade internacional.”
Quem botou na conta do “destino” o rompimento da barragem da Vale, em Brumadinho (MG), foi o discurso do ministro das Minas e Energia, almirante Bento Costa Lima Leite de Albuquerque Júnior, em um evento que reuniu autoridades, investidores e executivos de empresas mineradoras de todo o mundo em Toronto, no Canadá, neste sábado (2). O texto foi disponibilizado na página do ministério por sua assessoria e pode ser lido, clicando-se aqui.
Contudo, não foi o “destino” que matou 186 pessoas – número que pode ultrapassar 300 considerando os desaparecidos. Mas foi a incompetência, a ganância, a arrogância e a inação de atores privados e públicos. A tragédia não é órfã, tem pai e mãe. A Vale, que instalou diversas barragens “bombas-relógio” pelo território brasileiro e não executou planos decentes para garantir a vida de seus trabalhadores e das comunidades no entorno e a integridade da água, do solo e do meio ambiente. Se Justiça for feita, além das responsabilidades criminais, a empresa terá que desembolsar indenizações morais, materiais e ambientais bilionárias às pessoas, à coletividade e ao país.
E, claro, o Estado brasileiro, pois também são responsáveis mandatários, senadores e deputados que não agiram para manter a empresa na linha, via leis, fiscalizações, punições. Ou magistrados, com interpretações de leis que amenizaram a punição a projetos que causaram sofrimento humano sob a justificativa de evitar que fossem inviabilizados. Ou ainda a parcela dos investidores e acionistas cuja preocupação é apenas com o aumento no valor das ações ou o pagamento de dividendos – não se importando que a empresa não diga toda a verdade sobre os riscos sociais e ambientais. Pois o que a lama não vê, o coração não sente
O ministro pode alegar que foi incompreendido porque quis dizer outra coisa. Palavras, contudo, são importantes e precisam ser cuidadosamente escolhidas – ainda mais quando incluídas em discursos de autoridades sobre tragédias. Da mesma forma, deve-se tomar cuidado ao omitir palavras, como o substantivo próprio “Vale”, que denomina a empresa dona da barragem utilizada para receber rejeitos da exploração do minério de ferro da mina do Córrego do Feijão, e que não aparece no discurso que está no site do ministério.
Duas barragens não se rompem, não matam dezenas de pessoas e não alteram para sempre o meio ambiente por conta do destino. Chamamos o que aconteceu em Brumadinho e Mariana de tragédia, desastre, catástrofe e, muito inadvertidamente, “acidente”, por tentativa de objetividade. O correto seria afirmar que isso faz parte de um empreendimento, um projeto coletivo, pacientemente implementado ao longo do tempo, tendo a Vale como protagonista, mas com muitos coadjuvantes.
Como já disse aqui, desastres da Vale em Brumadinho e Mariana fazem parte de um empreendimento coletivo que não enxerga barreiras ideológicas e matizes políticos. Não surgiu neste governo, que acaba de começar (apesar dele se esforçar em atacar a fiscalização e o licenciamento ambientais e a fiscalização do trabalho no intuito de alegrar alguns grupos arcaicos que lhe dão suporte) e não deve terminar com ele.
A vida vale muito pouco diante do extrativismo brasileiro, com o perdão do trocadilho. Nossa riqueza natural e ambiental tampouco. Muito menos a dignidade de comunidades tradicionais atingidas pela lama que correu, em 2015, pelo rio Doce ou das que são alcançadas pela que corre, agora, em direção ao rio São Francisco. Talvez se tivéssemos outro projeto de país, um em que a centralidade estivesse na dignidade humana, o poder público e a empresa teriam sido convencidos de que o minério de ferro teria que ficar no solo até que fosse possível garantir o armazenamento dos resíduos sem riscos.
Já que o ministro foi discutir a mineração, seria ótimo que falasse sobre a necessidade de mudar o seu modelo de desenvolvimento, não só no Brasil, mas em outros países. Não é apenas com a exploração irresponsável, sem olhar para os riscos e os impactos, que a atividade pode causar danos graves a milhões de pessoas. Municípios como Brumadinho dependem profundamente da operação da Vale e de outras empresas do mesmo setor não apenas por empregos, mas pelo dinheiro dos impostos e royalties. O Estado não pode deixar o planejamento do desenvolvimento de regiões inteiras nas mãos da iniciativa privada, ausentando-se em fomentar efetivamente a diversificação econômica, pois acaba contribuindo para uma perigosa dependência.
Esse erro só é percebido após uma tragédia, como a de 25 de janeiro, mas também quando, após um boom crescimento relacionado à exploração extrativista, chega o momento do colapso regional com a exaustão de uma mina. A falta de uma proposta consistente sobre isso é a mesma que traz ansiedade a outros locais de onde empresas brasileiras ou multinacionais extraem riquezas, gerando empregos e arrecadação, levando crescimento, mas também colocando em risco vidas e o meio ambiente, em uma contagem regressiva para o abandono.
Há décadas reportagens e relatórios apontam os riscos da exploração mineral inconsequente em um país no qual grandes empresas controlam não apenas a produção de leis como influenciam nos processos de licenciamento e fiscalização e no julgamento de disputas que as envolve. Mas a culpa é sempre dos mensageiros que espalhas a notícia ruim, sejam da imprensa ou da sociedade civil. Logo após tragédias, o coro é contra os responsáveis por elas. No restante do tempo, o coro é contra quem denuncia e alerta sobre riscos.
O atual modelo tem um potencial destruidor muito grande, além de ser extremamente concentrador. O resultado da exploração dos recursos naturais e do trabalho humano, mantendo o padrão adotado até aqui, continuará nas mãos de poucos, sejam eles brasileiros ou estrangeiros. Precisamos tirar o “desenvolvimento sustentável” da prateleira da ficção e implementá-lo em regiões mineradoras. Garantindo que a perspectiva de futuro de milhões de pessoas não se encerre quando a montanha no horizonte for levada, por trem ou barco, para longe dali. Ou quando ela, diante da ignorância humana, deslizar sobre suas cabeças.
Em tempo: na mitologia grega, há uma personificação para o encontro das pessoas com seu destino, para a desgraça iminente. O nome dela é Moros.