Na real, pelo simulado quase ninguém escaparia da lama se uma barragem rompesse de fato e não de ficção

Quando a sirene da Vale apitou, às 15h de sábado (17), avisando que o simulado de rompimento de barragem tivera início – e que todos deveriam sair de suas casas como se a lama de rejeitos estivesse chegando em alta velocidade, a dona de casa Ruth Alves nem prestou atenção – estava na cozinha coando o café da tarde e por lá permaneceu por algum tempo.

Mas o seu marido, o vidraceiro Antônio Matilde estava atento, esperando na janeila pela anunciada sirene. “Soou quase um zumbido, foi bem baixinho”, queixou-se – e foi avisar a mulher para saírem logo para o ponto de encontro onde, garantiram “as moças-laranja”, a lama que mata não chegaria.

Ruth quis terminar o café. Mas, de pronto, Matilde retrucou: “Vamos fazer direito (o simulado), como se fosse verdade”. E assim fizeram.

Da rua Joaquim Valadares, no bairro Nova Vista, onde moram bem rente do cordão que segura o rejeito, até o ponto de encontro na rua João de Oliveira, na curva onde começa a descida para o bairro Jardim das Oliveiras, eles levaram 30 minutos.

Com o atraso na saída, só chegaram às 15h45. Ou seja, se não fosse ficção, mas de fato uma corrida contra a morte, eles não se salvariam. “Não deu para correr, o morro é muito pesado”, queixou-se a dona de casa, cansada com a subida. “Eu confio só em Deus. Só Ele nos salva.”

Uma jovem que passava ao lado sugeriu: “A Vale bem que podia abrir uma academia de ginástica pra gente. Só com muito exercício vamos conseguir escapar com vida”.

Disse isso e seguiu para o ponto seguro, onde empregados da Vale e da Defesa Civil os aguardavam como quem os esperam de uma maratona, vitoriosos na corrida contra a lama fictícia – mas que já matou muita gente em Minas Gerais, ainda impunemente.

“Esse simulado foi só circo, não teve nem pão com salame com refrigerante. Ia ser muito mais divertido se tivesse essa recompensa para quem chegou ao ponto seguro”, queixou-se o estudante Edson Madeira, que reclamou da falta de oportunidades de emprego para o jovem – e também de lazer, pois nem o parque das Acácias existe mais no bairro.

Moradores acham que se tem perigo, a Vale tem de retirar quem quer sair

Na parte alta da rua João de Oliveira, a conversa entre amigos só podia ser o simulado no bairro Nova Vista.  José Soares da Cruz, aposentado, acha que, se há perigo, todos devem treinar que é para aprender a correr da lama.

Mas ele mesmo vai ficar quieto em casa, pois onde mora o rejeito não chega. “Só vou sair depois com segurança, para ver se posso ajudar em alguma coisa.”

Ao seu lado, a também aposentada Luzia Gonçalves achou o simulado uma brincadeira de gente adulta com participação também de crianças. “Eu é que não vou sair correndo. Já cansei de correr na vida.”

Mas ela se preocupa com a segurança de quem vive na parte baixa do bairro Nova Vista, rente à barragem. “Tem muito idoso morando por lá. Se há perigo, como a própria Vale diz que tem, acho importante a ‘Companhia’ tirar todo mundo de lá”, solidariza-se.

Condicionante

É essa remoção que reivindica o Comitê Popular dos Atingidos pela Mineração em Itabira e Região, que exige junto ao Ministério Público o cumprimento da condicionante 46 da Licença de Operação Corretiva (LOC), aprovada em 2000, pela Câmara de Mineração, do Conselho Estadual de Política Ambiental (Copam), concedendo licença para a Vale continuar minerando no complexo de Itabira.

A condicionante trata do reassentamento populacional, ”como medida preventiva a toda intervenção futura do empreendimento que implicar riscos às famílias”.

E é o que tem reivindicado a aposentada Maria José de Araújo, assim que rompeu a barragem 1 da mina de Córrego Feijão, em Brumadinho. Desde então não tem sossego.

Ela foi uma entre os 37 participantes da reunião preparatória ao simulado, sábado pela manhã no clube Real, com moradores da Vila Técnica Conceição, Conceição de Baixo, Ribeira, Rio de Peixe.

Maria José mora no bairro Conceição de Baixo, a menos de três quilômetros da barragem do Zé Cabrito (Conceição). “Se a lama descer, não tem como fugir”, assusta-se.

“Não tem que esperar chegar ao nível 2 para nos retirar de lá. Se tem risco a ponto de ter de impedir que se trabalhe abaixo da barragem e desativar o presídio, os moradores também têm que ser retirados”, diz ela, que participou do simulado com uma tarja preta no braço “em sinal de protesto pacífico”.

“Não teremos tempo de fugir. A rota de fuga nos manda de encontro da lama”, ela critica o manual de autossalvamento apresentado pela Defesa Civil. “A vida tem que estar sempre em primeiro lugar e não é brincadeira de simulado.”

A ativista do Comitê Popular teme até mesmo pelo descomissionamento (fechamento com medidas ambientais e de segurança) da barragem Conceição.

“Qualquer intervenção pode pôr em risco estrutura e danificar a barragem”, afirma Maria José, que, com razão, não quer continuar vivendo com a sua família abaixo de uma estrutura que ninguém sabe até que ponto é segura. “Nem a Vale já atesta a sua total segurança”, comenta a aposentada.

Experiência

Também moradora do bairro Conceição de Baixo, Divina Elizabeth da Cruz Macedo acredita que a remoção dos moradores é a única medida preventiva a se fazer – e não o simulado, que para ela representou quase nada.

Segundo a moradora, para se fazer a remoção, que tem de ser negociada com cada morador e não compulsória, a Vale tem experiência em desapropriar territórios. “Quando foi de seu interesse, ela ‘desapropriou’ e removeu a comunidade do Rio de Peixe, do Explosivo, da Camarinha e tantos outros bairros”, recordou.

“Quando foi de seu interesse, ela agiu rapidamente. Se corremos riscos, porque temos que ficar se queremos sair? Por que não fazer uma nova vila para a gente morar?”

Leia na íntegra em Vila Utopia.

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