Nota da Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale

Após quatro anos do rompimento da barragem do Fundão, da Samarco/Vale/BHP, em Mariana e dez meses do rompimento da barragem I da Vale em Brumadinho o cenário de dor, desrespeito e não reparação continuam. Após os rompimentos das barragens, a violação aos direitos das atingidas e dos atingidos não cessou no evento em si, mas vem se multiplicando através do tempo. 

Ao que se refere a bacia do rio Doce, após quatro anos, nenhuma casa foi entregue aos moradores de Bento Rodrigues, comunidade completamente destruída pelo mar de lama que irrompeu no dia 05 de novembro de 2015. Até hoje pessoas lutam para serem reconhecidas como atingidas ao longo da bacia do rio Doce. 39 municípios foram atingidos pela lama e a cada dia direitos são continuamente violados. Foram derramados 62 milhões de metros cúbicos de lama tóxica, que em poucos minutos se espalharam, levando destruição por todo o caminho até chegar ao mar e se estender por quilômetros Atlântico adentro. Mesmo após quatro anos, a destruição é incalculável. 

Além das 19 pessoas mortas, Priscila Monteiro luta para incluir seu bebê na lista de vítimas. Ela estava grávida de 3 meses, quando a lama cruzou o seu caminho. Ela foi arrastada por mais de um quilômetro pela lama e ficou internada por 13 dias. Priscila luta até hoje para que seu feto seja também contabilizado como vítima do crime, mas a Samarco/Vale/BHP negam responsabilidade. 

O mesmo aconteceu em Brumadinho, onde Fernanda Damian estava grávida de cinco meses quando veio a óbito em decorrência da lama da barragem I da Vale. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) determinou a indenização pela morte do bebê, abrindo um precedente. A Vale continua a negar a sua responsabilidade em mais essa morte, afirmando que não pode se responsabilizar pelo feto que poderia ou não nascer. O cinismo e a frieza da empresa com as vítimas não tem limite. 

 Em Brumadinho, 256 pessoas foram mortas e outras 14 permanecem desaparecidas. Esse foi o maior acidente de trabalho já registrado no país e um dos maiores crimes socioambientais do Brasil. Até o momento, pouco foi feito para atender os atingidos e atingidas e para compensar ou mitigar os incalculáveis impactos e danos ambientais ao longo do rio Paraopeba. A população de Brumadinho segue resistindo e lutando por justiça. 

Não bastasse o crime, a população ainda precisa se mobilizar para reivindicar judicialmente maior informação e participação no processo de reparação aos danos provocados. Os moradores reclamam que as informações chegam truncadas e que não têm acesso a todas as audiências. A estratégia utilizada pela Vale já é bem conhecida: ela posterga o processo de reparação, criando um movimento de desmobilização entre as pessoas atingidas.

Antes do rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, a empresa já sofria processos de contestação social na região pela destruição dos mananciais de água e aquíferos. O próprio pedido de ampliação do Complexo Paraopeba foi cercado de polêmica e irregularidades. Os movimentos sociais criticaram a diminuição do potencial de risco do empreendimento, que permitiu a empresa solicitar um licenciamento simplificado, ou seja, em fase única e não trifásico, como é usual. Assim, a empresa conseguiu a aprovação de sua licença em dezembro de 2018, um mês antes do rompimento da barragem, na Câmara de Atividades Minerárias do Conselho Estadual de Política Ambiental (CMI/Copam), por 9 votos a um. O único voto contrário foi de Maria Teresa Corujo, a Teca, que destacava que o processo havia sido feito às pressas, sem levar em conta os reais impactos. 

Os dois crimes possuem diversos pontos em comum, mas o maior deles é a situação de dor. Ambos fazem parte de um modelo mineral usurpador, destruidor e violador de direitos, onde a Vale é seu maior expoente. Os casos de Brumadinho e da bacia do rio Doce são a expressão máxima da destruição que a mineração pode causar. Entretanto, a mineração mata todos os dias e em pequenas doses, seja ao longo da Estrada de Ferro Carajás, que permite o escoamento do minério do Pará ao porto do Maranhão ou em Moçambique com o Corredor Logístico de Nacala, que liga a Mina de Carvão de Moatize, em Tete, ao Terminal marítimo de Nacala-à-Velha, na província de Nampula, cruzando a República do Malawi. 

Seja nos passivos ambientais que a empresa deixou em Santa Cruz (Rio de Janeiro) com a venda dos ativos da antiga TKCSA ou na Colômbia com o projeto da Mina El Hatillo, no departamento de César, uma das principais regiões de carvão mineral do país. Além das péssimas condições em que reassentou mais de 1.300 famílias moçambicanas, retiradas de suas terras ocupadas há gerações para dar lugar ao projeto de extração de carvão da empresa na província de Tete. 

Ainda há a participação da Vale na Norte Energia S.A., consórcio responsável pelo Hidrelétrica de Belo Monte na Volta Grande do Rio Xingu, no estado do Pará. O projeto sempre foi alvo de intensas críticas por provocar grande destruição social, ambiental e econômica. No Pará, a Vale ainda é responsável por danos ambientais e na saúde das comunidades indígenas Xikrin e Kayapó. O Ministério Público Federal (MPF) constatou lançamento de íons de metais pesados, nas margens do rio usado pelos indígenas. Ainda há casos de malformação fetal e doenças graves comprovadas em estudos realizados pelo MPF.

Ao que se refere às trabalhadoras e aos trabalhadores, a realidade é de intensificação da jornada de trabalho, não reconhecimento de seus direitos trabalhistas e cooptação dos sindicatos. Trabalhadores/as e comunidades no Brasil e no exterior convivem com uma empresa que paulatinamente aumenta sua produção, intensificando, na mesma proporção, a pressão sobre seus trabalhadores/as e os territórios em busca de maiores lucros. Apesar do que a Vale propagandeia, trabalhadores/as e comunidades relatam a inexistência de diálogo, práticas de intimidação e uma política permanente de cooptação do movimento sindical e de seus representantes na busca por controle das críticas. 

Os casos se multiplicam e além dos impactos negativos da atividade mineral, hoje, diversas comunidades em Minas Gerais vivem o “terrorismo de barragens” da Vale. São localidades, como Barão de Cocais e Macacos, que convivem com o medo do desmoronamento das barragens. Nessas comunidades, famílias foram desalojadas e vivem com insegurança e apreensão do que será do futuro. Há denúncias sobre a condição em que as evacuações foram feitas e até a sobre a falta de informação as pessoas e comunidades. 

Em todo esse cenário não é surpresa que o quadro de saúde mental das pessoas tenha se deteriorado. As dores das perdas e as incertezas com o futuro geraram quadros similares em diversas localidades. Estudo realizado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), encomendado pela Cáritas Brasileira, evidencia que as vítimas adultas (maiores de 18 anos) das regiões atingidas pela lama da Samarco/Vale/BHP possuem 5 vezes mais chances de desenvolver depressão do que a média da população brasileira. O transtorno de estresse pós-traumático, por sua vez, é 12 vezes maior nesta mesma faixa etária de atingidos  e atingidas do que a média da América Latina e 82% de crianças e adolescentes afetados diretamente pelo crime sofrem de estresse pós-traumático. Esse quadro deve-se a angústia, a insegurança e ao medo diante do futuro, que incluía a falta de confiança nas ações de reparação conduzidas pela Samarco/Vale/BHP. 

Em Brumadinho, segundo a Secretaria Municipal da Saúde, os suicídios passaram de 1 para 3, e as tentativas, de 30 para 39 na comparação do primeiro semestre de 2018 com o mesmo período de 2019. Além disso, o uso de antidepressivos cresceu 60% e o de drogas contra a ansiedade, 80%. A Vale é a causa direta do adoecimento mental de populações inteiras, seja pelo trauma vivido ou pela expectativa do trauma vindouro. Além disso, é importante ressaltar que o adoecimento mental pode acarretar no agravamento de doenças físicas que  pré existiam nas atingidas e atingidos. 

No referido município, a Vale deixou inúmeros órfãos. Crianças que passam por grandes catástrofes são extremamente vulneráveis a problemas de saúde mental e precisam de acompanhamento. Ao invés de políticas de prevenção, a empresa custeou apenas quatro consultas e descontinuou o atendimento. Quatro consultas para quem além do estresse agudo, terá que viver permanente com a perda do ente querido. 

Nós, enquanto Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale, compreendemos a mineração como uma atividade social e ambientalmente predatória, que recai especialmente sobre mulheres, negros, trabalhadores/as rurais, pescadores/as e povos tradicionais. O racismo ambiental é estruturante na mineração por impactar e causar danos mais diretamente nas populações negras e empobrecidas. O patriarcado e a colonialidade também são estruturantes em relação às mulheres, pois contribui com as desigualdades sistêmicas a que essas mulheres, em alguma medida, já são vítimas, além de inseri-las em contextos de vulnerabilidades e violências que não existiam antes  do desenvolvimento da atividade minerária em seus territórios. 

Outra característica do setor é a geração de dependência econômica dos municípios. A mineração é uma força centrípeta que impossibilita a geração de alternativas econômicas e disputa recursos como a terra, água e energia com as outras atividades locais. A pergunta que fica é: quando a mineração termina o que resta? Quando as atividades extrativas se encerram qual o legado deixado? As mineradoras respondem que é o desenvolvimento local, mas a realidade revela um cenário de  contaminação do solo, do ar, dos recursos hídricos, mortes, monotonização econômica, agravamento das injustiças sociais, etc. 

Como estratégia para denunciar o modelo mineral brasileiro foi realizada em outubro deste ano uma jornada de denúncia por países da Europa, com o objetivo de evidenciar as violações de direitos do setor mineral no Brasil e no mundo por empresas, que através do seu capital transnacional acirram conflitos e desigualdades. Uma das ações foi o ingresso de uma queixa criminal na Alemanha contra a empresa certificadora alemã Tüv Süd, que atestou a segurança da barragem I da Vale em Brumadinho mesmo diante de diversos problemas de segurança que foram verificados nos meses precedentes, e que já apontavam a situação crítica da barragem rompida. Para os/as denunciantes, a Declaração de Estabilidade foi decisiva para que não fossem tomadas medidas de emergência necessárias para melhorar a segurança da barragem, situação que perdurou até que ela se rompesse. A queixa criminal aponta que, mesmo diante dos riscos identificados, a empresa não hesitou em emitir a Declaração de Estabilidade. De acordo com os denunciantes, tal declaração não foi emitida com justificativas técnicas válidas, mas sim por motivos comerciais de interesse privado das empresas Vale e Tüv Süd.

Essa ação é de extrema relevância ao conectar a cadeia da mineração, ao mesmo tempo em que evidencia o conflito de interesses existente no modelo de automonitoramento como regulador da atividade mineira no Brasil. O automonitoramento das empresas vem acompanhado da deterioração do aparato estatal que teria a função de fiscalizar essas empresas. Essa é uma política que agrava ainda mais o cenário e possibilita catástrofes como a de Brumadinho e da bacia do rio Doce. 

O Estado atua em parceria com os entes privados, negligenciando a segurança e a vida das pessoas. O cenário se agrava ainda mais com o governo Bolsonaro, que adota como política a ampliação da mineração no país e a viabilização da mineração em terras indígenas. Essa política atrelada ao desmonte dos direitos sociais, ataques as institucionalidades e as defensoras e aos defensores de direitos humanos intensifica a perda da proteção social dos grupos mais vulneráveis e a violência contra os/as defensores/as de direitos humanos. O assassinato do índio Paulo Paulino Guajajara, da Terra Indígena Arariboia, no Maranhão, no dia 01 de novembro deste ano, é um caso exemplar da violência contra os povos indígenas e defensores/as de direitos humanos. 

Em todo esse cenário e no mês que marca os quatro anos do rompimento da barragem de Fundão e os dez meses da barragem I da Vale em Brumadinho, voltamos a nos solidarizar com todas as famílias que tiveram suas vidas desfavoravelmente modificadas para sempre e prestamos homenagem às mulheres e aos homens que tiveram suas vidas ceifadas pela mineração. Esses casos não podem cair no esquecimento, ao contrário, devemos sempre lembrar  do poder de destruição e dor que a mineração e a Vale S.A., como grande representante do setor, causam sistematicamente nos territórios e nas populações.

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