Tragédias de Mariana e Brumadinho não foram acaso. Grandes empresas de mineração financiaram políticos — de quase todos os partidos — que afrouxaram a fiscalização de barragens mineiras. Em abril de 2013, uma elegante festa de núpcias expressou esta promiscuidade.
Já é final de festa. Convidados comem docinhos – beijinho e mini mousse de maracujá – quando o pai da noiva sobe ao palco e dá uma canja acompanhado pela banda. Os políticos e empresários mais poderosos de Minas Gerais deixam as taças de lado para aplaudir o anfitrião e cantor amador, José Fernando Coura, que em abril de 2013, quando celebrou o casamento da filha Luciana, ocupava a presidência do Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram).
Coura é um defensor histórico dos interesses das mineradoras e, por isso, chamado por ambientalistas de “lobista da mineração” – rótulo que rejeita. Não há dúvida, porém, sobre as suas boas relações. Entre os mil convidados do casamento da filha, estavam o então ministro Fernando Pimentel (PT), depois eleito governador Minas Gerais, o então presidente da Vale, Murilo Ferreira e o vice-governador da época, Alberto Pinto Coelho.
Também prestigiaram o evento os presidentes da Assembleia Legislativa do Estado, Dinis Pinheiro; do Tribunal de Contas, Mauri Torres e da Federação das Indústrias de Minas Gerais (Fiemg), Olavo Machado.
Donos de jornais circulavam pelo salão ao lado de pelo menos 9 deputados federais e 8 deputados estaduais. Entre os 30 figurões identificados nas fotografias publicadas nas colunas sociais da imprensa mineira, estão personagens que seis anos depois seguem protagonistas, com postos chave nos governos do presidente Jair Bolsonaro e do governador Romeu Zema, como Marcos Montes, secretário-executivo do Ministério da Agricultura e Adriano Magalhães, secretário adjunto do governo de Minas.
A proximidade entre empresários e servidores públicos pode ser menos inocente do que se vê em uma festa de casamento. Foi durante o governo de um dos convidados da festa, Fernando Pimentel (PT), que o estado de Minas Gerais afrouxou a política de licenciamento ambiental. A medida beneficiou a Vale no licenciamento da barragem que rompeu em Brumadinho, em 25 de janeiro, matando 233 pessoas e deixando outros 37 desaparecidos.
O processo de afrouxamento da lei começou antes, ainda em 2014, na gestão de outro convidado, o então governador Alberto Pinto Coelho (PP) quando, em uma reunião a portas fechadas, a Vale sugeriu as mudanças a serem feitas na legislação ambiental – acatadas na gestão do petista. Quem escutava as sugestões dos diretores da Vale, em clima amigável, eram servidores públicos responsáveis por fiscalizar a empresa e suas barragens, conforme revelou a Repórter Brasil.
Desde novembro de 2015, quando a barragem do Fundão rompeu em Mariana, diversas reportagens e estudos mostraram o recorrente e milionário investimento de empresas ou de executivos da mineração em campanhas políticas. Essa proximidade ficou explícita no casamento da filha de Coura, que hoje exerce o quarto mandato à frente do Sindicato da Indústria Mineral do Estado de Minas Gerais (Sindiextra) e que também é vice-presidente da Federação das Indústrias de Mingas Gerais (Fiemg). Dos cerca de 25 políticos presentes à festa, pelo menos 20 tiveram campanhas financiadas por mineradoras ou siderúrgicas nas eleições de 2010 ou na seguinte ao casamento, em 2014.
O financiamento de campanha por empresas era permitido pela legislação eleitoral até 2015. Porém, escândalos e delações no escopo da operação Lava Jato revelaram conflitos de interesses nessas doações, que foram, posteriormente, consideradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal.
O lobby – que não é regulamentado no Brasil –, pode ser considerado uma atitude legítima, pois representa o direito da sociedade de pressionar para que os políticos atendam seus interesses. A análise é do professor professor Ciência Política da Universidade Federal do Paraná, Adriano Codato. “O problema é que há uma assimetria entre os recursos que uns e outros têm para pressionar a decisão”, analisa Codato, referindo-se à falta de equilíbrio de forças. Ou seja, em uma democracia perfeita, o lobby das mineradoras deveria ter a mesma força do lobby dos ambientalistas.
Essa assimetria de forças é também criticada por Maria Tereza Corujo, do movimento SOS Serra da Piedade. “Para quem defende Minas Gerais, a proximidade de Coura com os políticos é preocupante”, afirma a ambientalista. “O lobby exercido por Coura, pela Sindiextra e pelo Ibram precisa ser investigado. Imagina o que pode estar nos bastidores disso?”, questiona Corujo, que foi a única conselheira do Conselho Estadual de Política Ambiental (Copam) a votar, em 11 dezembro de 2018, contra a autorização para obras na barragem de Córrego do Feijão – a que rompeu em Brumadinho.
“Coura é presidente de um sindicato, e não lobista”, respondeu o Sindiextra em nota enviada à Repórter Brasil.
Noivo nomeado
Coura termina de cantar. Enquanto uns deixam a pista, recolhem os blazers sobre as cadeiras e se preparam para ir embora, outros aplaudem embriagados – talvez pela beleza da vista de um dos espaços mais nobres de Belo Horizonte. O salão do Alta Vila fica no topo de uma torre de 101 metros de altura e proporciona visão panorâmica da capital mineira das cidades vizinhas e das montanhas do quadrilátero ferrífero.
À época do casamento, os convidados ligados ao setor tinham outro motivo para comemorar: a mineração vivia um ótimo momento. A tonelada do minério de ferro era vendida a US$ 137, valor superior aos US$ 88 atuais.
Depois de brindar no casamento e ser eleito governador, Pimentel nomeou o noivo da filha de Coura, José Guilherme Ramos, para o cargo de subsecretário de Política Mineral e Energética do Estado.
Ramos é hoje integrante do Sindiextra e, antes de atuar no governo Pimentel, era conhecido nos corredores e gabinetes da Assembleia Legislativa por defender os interesses das mineradoras.
“As contratações feitas no governo foram efetuadas pelos secretários das pastas correspondentes, que as analisaram tecnicamente”, respondeu a assessoria de imprensa de Pimentel, ao ser questionada sobre o motivo da contratação de Ramos. Já Coura, disse, em nota enviada pelo Sindiextra, que a nomeação de seu genro “ocorreu por critérios técnicos, em razão de sua especialidade”.
Menos de três meses depois do casamento, o Sindiextra pagou R$ 400 mil para uma empresa de consultoria, a OPR, que teve Pimentel como sócio até 2012. À época do pagamento, a empresa era comandada pelo principal assessor do petista, Otílio Prado. O negócio foi revelado pelo jornal O Globo, investigado pela Operação Acrônimo da Polícia Federal e é alvo de inquérito no Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Para Coura, “não houve ilícito algum”. Ele acredita que o caso será esclarecido na Justiça.
Na campanha eleitoral de 2014, quando foi eleito governador, a candidatura de Pimentel recebeu R$ 6,4 milhões de doações de 21 empresas mineradoras e siderúrgicas. Quase a metade desse valor (R$ 3,1 milhões) veio de empresas do grupo Vale.
Durante o governo do petista, o projeto de lei 2.946 de autoria do executivo e sancionado em janeiro de 2016 é apontado por ambientalistas como responsável por flexibilizar a fiscalização ambiental. O projeto entrou em vigor três meses após o desastre de Mariana, que matou 19 pessoas e destruiu o ecossistema da bacia do Rio Doce.
A lei gerou uma série de alterações que possibilitou a entrada de um representante do Sindiextra e outro do Ibram como representantes da sociedade civil na Câmara de Atividades Minerárias (CMI) do Conselho Estadual de Política Ambiental (Copam). “Basta assistir a uma das reuniões do conselho para observar que os interesses deles (Sindiextra e Ibram) são pelo lucro a qualquer custo”, afirma o diretor de meio ambiente e saúde da União de Associações Comunitárias de Congonhas, Sandoval de Souza Pinto Filho.
Outra mudança ocorrida no Estado foi a deliberação normativa 217 que passou a permitir, em alguns casos, rebaixar o potencial de risco das barragens, o que pode simplificar o processo de licenciamento para apenas uma etapa.
Questionado se a Vale exerceu algum tipo de pressão para alterar a legislação de segurança de barragens, a assessoria de Pimentel respondeu, em nota: “As doações recebidas pela campanha eleitoral mencionada já foram aprovadas pela Justiça, que atestou sua lisura. É falso e ofensivo relacioná-las a medidas adotadas pelo Governo de Minas Gerais”.
A assessoria do ex-governador afirmou que “em nenhum momento, as medidas adotadas previram a concessão indiscriminada de licenças”. O objetivo, segundo Pimentel, foi “modernizar a avaliação de pedidos de licenciamento ambiental”, pois havia uma demanda acumulada em janeiro de 2015, no início do governo, de quase 3 mil processos sem avaliação. Leia a resposta na íntegra.
Suprapartidário
“Comparecer a eventos sociais é parte do dia-a-dia da política. Tanto que outros candidatos à eleição em 2014, inclusive adversários, estiveram na mesma cerimônia”, disse Pimentel ao ser perguntado sobre sua relação com Coura. Entre os adversários do petista na mesma festa estava o vice-governador de Minas, Alberto Pinto Coelho (PP), que assumiu o poder quando Antonio Anastasia (PSDB) se afastou para candidatar ao Senado.
Em 2010, Pinto Coelho recebeu doações de R$ 2,2 milhões de seis empresas siderúrgicas e mineradoras. Foi no período que Pinto Coelho governava, em outubro de 2014, que diretores da Vale se reuniram a portas fechadas com servidores do governo de Minas Gerais para discutir regras para simplificar e acelerar o licenciamento ambiental no Estado, conforme revelaram áudios e documentos obtidos com exclusividade pela Repórter Brasil. Procurado, Pinto Coelho não respondeu às perguntas enviadas.
Do mesmo grupo político de Pinto Coelho, o então presidente da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, Dinis Pinheiro (Solidariedade) foi um dos padrinhos do casal. No ano seguinte, Pinheiro foi candidato à vice-governador na chapa encabeçada por Pimenta da Veiga (PSDB). A candidatura deles recebeu R$ 3 milhões em doações de 12 mineradoras e siderúrgicas.
O coordenador político da campanha era Danilo de Castro, homem forte dos governos de Aécio Neves e Anastasia, quando ocupou a secretaria de governo em ambas gestões. O filho de Danilo, Rodrigo de Castro, é deputado federal desde 2007. Na eleição de 2014, Rodrigo recebeu R$ 850 mil doados por mineradoras e siderúrgicas. Tanto Danilo de Castro quanto Dinis Pinheiro não responderam às questões enviadas pela reportagem.
Danilo de Castro está ao lado do hoje senador Carlos Viana (PSD) em uma das fotos da festa. Em seu primeiro mandato, o senador conquistou a relatoria da CPI de Brumadinho. A comissão quer apurar as causas do rompimento da barragem da Vale, em Brumadinho.
Na campanha, o senador recebeu doação de R$ 100 mil de Luis Fernando Franceschini da Rosa, advogado e sócio investidor de empresas de mineração. Questionado se a doação eleitoral pode comprometer seu trabalho na CPI, Viana respondeu que não. “Eu sei que é comum políticos se posicionarem de acordo com interesses momentâneos, mas comigo nunca foi e nunca será assim. Nunca estive com o Franceschini. A doação veio por pessoas ligadas ao meu ex-partido, PHS”.
Outros dois políticos que ocuparam cargos de destaque em comissões do congresso voltadas à mineração e que compareceram à festa de casamento foram o ex-deputado Gabriel Guimarães (PT), atualmente diretor do Atlético-MG e Marcos Montes (PSD), secretário-executivo do ministério da Agricultura.
Guimarães e Montes foram presidente e vice, respectivamente, da Comissão Especial sobre o Código da Mineração. Na campanha de 2014, R$ 273 mil foram doados por empresas ligadas à mineração e siderurgia para a campanha do petista. Já a candidatura de Montes arrecadou cerca de R$ 487 mil de empresas do setor.
Guimarães disse que o convite para a festa se deve a relação de amizade que tem com os noivos e não apenas com Fernando Coura. “Só fui porque fui convidado. Não costumo ir a lugar nenhum que não sou convidado”, respondeu. Explicou que manteve contato com os setores produtivos, incluindo as empresas que doaram para sua campanha, mas que elas não tiveram influência em sua atuação parlamentar. “Isso seria crime. Eu sou advogado e sei os limites da atuação”, afirmou. Procurado, Marcos Montes não respondeu ao pedido de entrevista.
Assim como Montes, o ex-secretário de Meio Ambiente, Adriano Magalhães, é outro que participou da festa e segue no poder. Magalhães foi nomeado pelo governador Romeu Zema para secretário adjunto da secretaria de Desenvolvimento Econômico. Um ano depois do casamento, em abril de 2014, Magalhães foi exonerado do cargo que ocupava, como secretário de Meio Ambiente no governo Anastasia. Ele é réu por prevaricação, acusado de ocultar autos de fiscalização e infração emitidos contra a mineradora MMX, de Eike Batista, de acordo com denúncia do Ministério Público. Procurado, Magalhães não respondeu às perguntas enviadas.
O prefeito de Nova Lima, Vitor Penido, pela sexta vez no comando da cidade foi outro convidado para festa que segue no poder. “Eu sou o maior defensor de mineradora do Brasil e o mais antipatizado entre ambientalistas”, afirma o prefeito, que é fundador e atual presidente da Associação dos Municípios Mineradores de Minas Gerais (AMIG).
Penido é um velho conhecido de Coura e diz que nunca foi procurado por ele para “pedir nada que não fosse correto”. Além disso, o prefeito entende que Coura exerce o papel de líder das mineradoras e tem que brigar por elas. Na campanha de 2014, quando foi candidato à deputado federal, Penido recebeu R$ 325 mil de empresas do setor minerário.
Alarme falso
A cidade governada por Penido teve 170 pessoas desalojadas, em fevereiro, devido ao aumento do risco de rompimento das barragens da mina Mar Azul, da Vale. A retirada de moradores das casas localizadas em áreas de risco se tornaram uma constante em Minas desde o rompimento da barragem da Vale.
Em março, em outra cidade mineira, São Gonçalo do Rio Abaixo, uma sirene acabou com a festa de casamento da estudante de educação física, Ananeria Toceda da Cruz, de 24 anos com o eletricista Breno Lucas da Cruz, de 37 anos. “Foi uma confusão tremenda. Todo mundo saiu correndo. Ninguém quis esperar para ver se era verdade ou não”, conta a noiva.
Os 150 convidados deixaram o local desesperados. Uma mulher que carregava uma criança no colo caiu e quase foi atropelada na confusão. “Quando soube que era alarme falso, tive uma sensação de alívio. Mas depois que passa o susto fica uma frustração, um vazio”, recorda.
A Vale atribuiu o disparo da sirene a um erro técnico. A festa foi encerrada antes das fotos oficiais, dos noivos partirem o bolo e, ao menos, provarem os docinhos. “Não comi o mousse de limão nem o bombom de coco”, lamenta a noiva.