Um número cada vez maior de paraenses, sobretudo aqueles que têm a oportunidade de confrontar o que acontece na sua terra com outras realidades, dentro e fora do Brasil, se inquietam diante de uma realidade que se impõe: embora o Pará cresça, não acompanha a evolução dos Estados que já estavam no topo do ranking nacional ou que a ele se agregam em função do seu melhor desempenho recente. Como isso acontece, se o Pará é tão rico em recursos naturais? A resposta poderia começar a ser buscada trocando-se o sinal interrogativo pelo afirmativo: isso acontece porque o Pará é rico em recursos naturais. Um território tão bem dotado de minérios, água, florestas, solos e espaço parte com vantagens comparativas (ou competitivas) invejáveis. Não significa que alcançará primeiro o ponto de chegada. Pode dar-se exatamente o contrário: confiando na abundância de seus bens naturais, que constituem um invejável capital físico, subestima ou desdenha sua capacidade de utilizar esse potencial. Não investe na qualificação humana o suficiente para saber o que fazer (e como fazer) para tirar o maior proveito possível desses atributos geográficos.
O Pará, que tem o segundo mais extenso território da federação brasileira e sua nona maior população, cai vertiginosamente de posição quando a mensuração considera os fatores sociais. A esmagadora maioria da sua população vive mal, com serviços de saúde e de alimentação precários e insatisfatórios, e uma educação que se situa dentre as piores do país, no rabo da fila de uma rede pública que se degrada, com honrosas exceções.
Os demais serviços também não acompanham a demanda, obrigando o cidadão comum (incapaz de pagar para atingir o limbo das exceções) a perder tempo e energia, que lhe farão falta na sua progressão pessoal, com as conhecidas consequências nocivas para a coletividade. Para exemplificar esse despreparo não é necessário nem analisar os casos mais graves de dilapidação, como a destruição da floresta, a degradação dos solos ou a poluição dos cursos d’água.
Examinemos o caso mais emergente num contexto de urgências numerosas desencadeadas pela péssima abordagem da natureza na “fronteira” paraense: os minérios. Eles constituem 85% da nossa pauta de exportações, que respondem por nossa principal importância para o Brasil: somos o quinto Estado exportador (na média dos últimos anos) e o terceiro que mais gerou divisas (em 2009). Nenhuma outra contribuição paraense é mais expressiva à riqueza nacional (somos o 21º em PIB per capita, o melhor índice para medir o resultado interno do aproveitamento econômico).
Qualquer um haverá de dar a receita para acabar com essa anomalia de extrair sempre mais minérios sem se desenvolver: deixar de vender matérias primas e passar a produzir bens manufaturados. É o esquema de muitas décadas e séculos. Foi assim que os Estados Unidos, país equiparável ao nosso (e tentação fácil em muitos estudos de história comparada), deixaram de ser colônia inglesa para desbancar a matriz da sua dominação imperial. Também os americanos são bem dotados de recursos naturais. Só que não se deitaram em berço esplêndido: se desenvolveram tecnologicamente à base de educação de primeira e ciência prioritária. Não podemos seguir a mesma fórmula porque o mundo mudou. Sua principal mudança foi ter-se tornado plano, como argumenta o jornalista Thomas Friedman em seu livro perspicaz sobre a globalização. Não vou considerar os efeitos nocivos desse processo. Apenas me deterei no que se tornou inquestionável: a universalização, como jamais houve antes e nunca imaginamos que viesse a acontecer. Antes se falava em internacionalização, com um sentido negativo e tenso tão caro à geopolítica aplicada na Amazônia. A Amazônia passou a fazer parte do mundo antes de se integrar ao próprio país, seguindo um curso mais inconstante e traumático na etapa da nacionalização do que na da internacionalização, que a precedeu. Tornamo-nos – e continuamos a ser – brasileiros, mas por dentro das nossas veias geográficas e culturais também fluem fluxos derivados de uma matriz (ou de várias delas) externa.
Hoje, mais do que nunca, é impossível entender a Amazônia sem situá-la no contexto mundial. Tanto para manter a forma espoliativa da utilização dos seus recursos (naturais e humanos) como para mudá-la. Sem considerar sua realidade física específica, toda análise sobre a região se torna conservadora, mantenedora do status quo, incapaz de formular um modo novo de relação do homem com a natureza e com os outros homens. Mas o regionalismo estrito e o nacionalismo são bitolas a impedir a visualização da realidade e da verdade concreta. Quando via as imagens insólitas da prova de Fórmula 1 realizada noturnamente em Xangai, a mais ocidental das metrópoles chinesas, me veio uma curiosidade típica dessa planetarização: quanto de minério de Carajás havia naqueles enormes prédios de aço que emergiam no horizonte como pano de fundo ainda mais insólito para a corrida de automóveis? Minério do melhor, como não há outro nas entranhas da Terra.
Logo também me veio uma ruminação: não aconteceu exatamente assim quando o ouro das Minas Gerais, depois do transbordo em Portugal, foi insuflar o embelezamento e enriquecimento da City de Londres? Nas cidades históricas mineiras ficaram testemunhos impressionantes de contrafação a essa brutal extração mineral, que até hoje – e cada vez mais – nos encantam e causam admiração. Mas quanto essa riqueza retida representa da que atravessou o oceano? Uma minúscula parte, como a que nos fica de Carajás, de onde sai o maior trem de carga do mundo para, em nove viagens diárias até um dos maiores terminais marítimos do planeta, em São Luiz do Maranhão, colocar nos navios transoceânicos 30 milhões de dólares a cada dia. Volume que aumenta com a incorporação de outros bens minerais, como manganês, agora cobre e, daqui a pouco, níquel. Só que a mera verticalização da produção pode não se traduzir por maior retenção de valor, mesmo quando viável economicamente.
Hoje é mais vantajoso produzir alumina, o insumo, do que alumínio, o bem transformado (que só é classificado como semielaborado porque o classificador despreza o componente de energia nele embutido). Não só pelo preço, atiçado pela demanda chinesa (carente de alumina, mas não de metal), como pelo custo da energia para a fundição. Foi por isso que, em 2010, a antiga Companhia Vale do Rio Doce decidiu se desfazer da Valesul, a fábrica de alumínio que começou a operar no Rio de Janeiro três anos antes da Albrás em Barcarena, sustentada numa perna falsa, a da energia barata e abundante.
A Vale vendeu a fábrica por metade do seu valor para se livrar do prejuízo e da insolvência operacional. A definição do que e como produzir envolve componentes muito mais sofisticados e abrangentes do que antes. A definição pode ser conjuntural, acompanhando a flutuação do mercado, mas tem que combinar essa circunstância com uma visão de longo prazo. Para isso, existe régua e compasso. Mas não as informações, o enchimento que dá validade às fórmulas científicas.
É preciso ir atrás delas, desentocá-las, dar-lhes significado e transformá-las em ferramentas operacionais. Com elas podemos chegar à conclusão de que poderia até ser melhor continuar a minerar se fosse rompida a dependência da China a que nos impôs a busca obsessiva da Vale por faturamento e lucro, num raciocínio imediatista correto apenas da perspectiva financeira, que hoje a caracteriza. Outros tantos ajustes, corretivos e inovações se impõem para que não continuemos a assistir impotentes a essa hemorragia mineral, que se tornou até mais volumosa do que a sangria vegetal, dois dos males que tornam o organismo territorial do Pará incapaz de suprir as necessidades da sua população, dentre as quais está a esperança por um futuro melhor. Esse futuro se apresenta no horizonte como miragem, que não nos chega nem nós a ele conseguimos chegar.