O que aprendemos com o rompimento da barragem em Mariana?

Aqui estamos no dia 5 de novembro, marco do rompimento da barragem de rejeitos de Mariana lidando com as consequências das três maiores catástrofes de mineração nas Américas. Apenas 14 meses antes do crime de Mariana, a lagoa de rejeitos desmoronou no Mount Polley, uma mina de cobre/ouro na província da Colúmbia Britânica, criando o maior colapso de uma barragem de rejeitos da história canadense. Menos de quatro anos depois de Mariana, a barragem de rejeitos de Brumadinho da Vale entrou em colapso, criando não apenas danos aos ecossistemas próximos, mas também desencadeando a pior tragédia da história brasileira, enterrando 272 pessoas em lama tóxico em questão de minutos. Quais são as lições que esses desastres podem ensinar?

Primeiro, precisamos aprender que nossos governos, tanto no Canadá quanto no Brasil, são fiéis adeptos da ordem mundial neoliberal. Nossos governos adotaram a narrativa da indústria de que um investimento em mineração traz empregos e crescimento econômico, que colocar os recursos de um país nos mercados globais é o bem maior. Nossos líderes governamentais basicamente entendem que seu papel é a promoção de mais investimentos em mineração, em vez da regulamentação da atividade minerária para o bem público e a sustentabilidade ambiental. Eles aceitam as práticas do modelo mineral e recuam para permitir que o setor se autorregule. Nossos governos concedem incentivos fiscais e subsídios hidrelétricos às mineradoras.

Pegada gigantesca da mineração: “Desapropriação ambiental”

Se não havíamos compreendido antes das tragédias das barragens de rejeitos, que nossos governos se tornaram defensores das mineradoras, certamente aprendemos depois. Assistimos empresas gozarem de imunidade, com pouca ou nenhuma punição. Infelizmente, percebemos que não podíamos depender de nossos governos para a defesa dos direitos das pessoas afetadas pela mineração ou para a proteção do meio ambiente. Portanto, a primeira lição é que estamos sozinhos, já que os governos basicamente estão do lado das mineradoras. E isso significou um enorme desafio para a sociedade civil intensificar suas lutas e fortalecer ações de incidência política que deveriam ter sido desempenhadas por nossos governos. Parabéns aos movimentos sociais no Brasil, como o Movimento de Atingidos e Atingidas por Barragem (MAB), rede de organizações da AIAAV, igrejas e universidades pelas formas criativas (ou combativas) que vocês têm respondido as situações.

A segunda lição sobre o rompimento da barragem de rejeitos é a necessidade urgente de ampliar nossa compreensão sobre as pegadas da mineração. Todos nós sabemos que uma licença de mineração para extração subterrânea ou a céu aberto, muitas vezes significa desapropriar as pessoas de suas terras e reassentá-las em outro lugar. Estamos cientes suficientemente da complexidade de uma operação mineral e de sua gigantesca pegada na ecologia do entorno? O conceito de “desapropriação ambiental” precisa entrar em nosso vocabulário. Precisamos entender como uma mina aciona vários processos de desapropriação. As comunidades tradicionais e aborígenes/indígenas enfrentam uma redução sistemática de recursos como terra, florestas, cursos de água, flora e fauna dos quais historicamente dependeram para a agricultura, caça, coleta, captura e pesca. Que diversidade de modos tradicionais está sendo suprimida à medida que a mineração passa a dominar?

A pegada de uma mina inclui estradas, trilhos, oleodutos e navios para levar o minério aos mercados globais. Inclui grandes quantidades de água para o processo de extração e, freqüentemente, muita poluição por água contaminada por meio desses mesmos processos de extração.

As barragens de rejeitos são por si só um grande componente da pegada de uma mina quando intacta, mas quando rompem tudo se torna visível. Centenas de pessoas ao longo de 650 quilômetros do Rio Doce nunca se consideraram “atingidas pela mineração” até que tiveram que fugir do tsunami de lama tóxica de Mariana que se dirigia ao Atlântico, destruindo suas terras, suas casas e seus meios de subsistência. E então eles tiveram que lutar para serem reconhecidos como “atingidos” e elegíveis para compensação.

No Canadá, as comunidades atingidas pelo rompimento de Mount Polley são em sua maioria, indígenas, com um histórico de colonização e de genocídio, mas também de resistência na defesa de seus territórios. Segundo informações do programa de Avaliação de Impacto na Saúde realizado após o rompimento, foram identificadas 46 comunidades indígenas das Primeiras Nações atingidas pelos rejeitos ao longo da bacia do rio Fraser, algumas até 200 quilômetros de distância do local da mina.

A desapropriação ambiental dos territórios é evidenciada nos projetos de mineração como de Mount Polley. Os modos de vida tradicionais são diretamente afetados, tornando mais difícil para as comunidades realizarem suas atividades como a caça, coleta e pesca. Na área próxima a mina, a pesca de salmão é algo central na vida comunitária, contribuindo para importantes necessidades nutricionais, mas também como uma característica central de suas crenças espirituais e ritos religiosos como guardiões da mãe terra. O desastre criou grandes preocupações sobre a saúde dos peixes, com muitas comunidades interrompendo imediatamente o seu consumo. A qualidade dos lagos e rios próximos é outra grande preocupação, assim como a saúde a longo prazo do salmão.

Nem a mineradora nem o governo estão atentos aos impactos nessas comunidades ou aos seus direitos de reparação dos danos. As organizações da sociedade civil no Canadá poderiam estar desempenhando papéis mais amplos de defesa e prestação de serviços para tornar visível a grave injustiça que está sendo perpetrada nessas comunidades dispersas.

Uma indústria global impulsionada exclusivamente pelas margens de lucro

Uma terceira lição a ser aprendida é que a indústria de mineração opera globalmente e é impulsionada pelas margens de lucro acima de tudo. Para uma grande empresa de mineração como a Vale, as preocupações locais e até mesmo nacionais são periféricas, questões a serem gerenciadas do que direitos e relacionamentos a serem respeitados. Senti orgulho de ainda fazer parte da Articulação Internacional de Atingidos e Atingidas pela Vale quando recebi a notícia da viagem de lobby à Europa no ano passado, tornando a luta contra a Vale global, enfrentando o mundo das cadeias produtivas e da governança global.

A parada na Suíça fez brilhar uma luz sobre a evasão fiscal. O governo suíço permite que a Vale Suíça seja, pelo menos no papel, o principal importador das exportações maciças de minério de ferro de Carajás. A Vale Suíça compra da Vale Brasil a preços abaixo dos aplicados no mercado. A Vale Suíça então volta atrás e revende este minério para a China a preço de mercado integral, embolsando a diferença. Isto engana o governo brasileiro da receita de exportação que poderia estar utilizando em importantes programas sociais no Brasil. A parada na Suíça também incluiu a participação no processo da ONU de elaboração de uma nova política de direitos humanos e empresas transnacionais. Medidas mais rígidas sobre as brechas fiscais colocadas à disposição da Vale pelo governo suíço são um grande componente das novas políticas.

Os lobistas brasileiros foram então para Bonn, onde se uniram à igreja e à organização de direitos humanos sediada na Europa em reuniões com o parlamento alemão. Eles levantaram questões de responsabilidade do governo alemão para empresas alemãs que operam internacionalmente, como a TUV Sud. Através de sua subsidiária brasileira, a TUV SUD havia emitido uma declaração de estabilidade para Brumadinho apenas quatro meses antes do rompimento.

Os melhores votos de força, coragem e criatividade ao prosseguir nesta luta para acabar com a impunidade empresarial e fortalecer a capacidade das pessoas afetadas pela mineração de defender seus direitos. Devemos medir o que estamos fazendo não tanto pelo que somos capazes de alcançar, mas pelo que nos tornamos quando trabalhamos juntos para cuidar uns dos outros e cuidar do planeta Terra.

A luta continua!

Rompimento de barragens de rejeitos nas Américas
Mineradora
Imperial Metals Corporation
Vale/BHP 50/50
Vale
Lugar
Williams Lake, BC
Mariana, Brasil
Brumadinho, Brasil
Produtos
Cobre e Ouro
Ferro
Ferro
Operações
Mina a céu aberto, planta de processamento, barragem de rejeitos, transporte rodoviário, porto em Vancouver.
 
2 minas a céu aberto, 3 plantas de processamento, 4 usinas de pelotização, 3 minerodutos, 3 barragens de rejeitos, porto em Vitória
 
Mina a céu aberto (não-operacional desde 2015), ferrovia, barragem de rejeitos localizada acima do escritório da mina e a cafeteria.
 
Data do Rompimento
4 de Agosto  de 2014
5 de novembro de 2015
25 de janeiro de 2019
Volume do Rompimento
 
25 milhões de metros cúbicos
 
 
32 milhões de metros cúbicos
 
12 milhões de metros cúbicos
Impacto Ambiental
Destruição do sistema ecológico nos arredores da mina e áreas de desova de salmão, mesmo em lugares a 200 km distantes.
Tsunami tóxico ao longo dos 600 km do Rio Doce até o Atlântico, destruindo terras, propriedade e rendas ao longo do caminho.
Destruição do ecossistema incluindo a bacia do Rio Paraopeba e ameaça ao fornecimento da água nas áreas urbanas.
Impacto Social
0 óbitos.Expropriação ambiental em mais de 50 comunidades atingidas na bacia do Rio Fraser que dependem na caça e pesca de salmão.
19 óbitos.Comunidades atingidas perderam renda. 3,2 mil pessoas afetadas na bacia do Rio Doce.
272 óbitos. (trabalhadores em sua maioria). Comunidades atingidas perderam renda.

Últimas notícias

É preciso pisar o chão e ouvir a terra

É preciso pisar o chão e ouvir a terra

A liderança quilombola Anacleta Pires da Silva, do Território Santa Rosa dos Pretos (MA). Foto: Andressa Zumpano Anacleta Pires da Silva é orientada pela terra, de onde brota sua inspiração, força e sabedoria para travar lutas pelo bem-viver coletivo, pelo acesso aos...