O que fazer quando empresas matam

Países têm o desafio de fazer com que grandes corporações, com receitas muitas vezes superiores a PIBs, respeitem os direitos humanos e sejam punidas por suas violações. Legislações, tratados e convenções focam na penalização de Estados e indivíduos

25 de janeiro de 2019. Brumadinho, Minas Gerais. O rompimento de uma barragem de rejeitos considerada de “baixo risco” e com “alto potencial de danos” da mineradora Vale, uma das maiores do mundo, deixou um país incrédulo. Era a repetição de uma tragédia que mal completara três anos, ocorrida a 200 quilômetro dali, em Mariana —a lama de uma barragem da Samarco, controlada pela Vale e pela BHP Billiton, causou em novembro de 2015 similar espetáculo de desrespeito a vidas e ao meio ambiente.

14 de fevereiro de 2019. Congresso Nacional, Brasília. Fabio Schvartsmann, presidente da mineradora, comparece a uma audiência na Câmara dos Deputados para explicar o rompimento da barragem de Brumadinho. “A razão pela qual estou aqui é para proteger a Vale também. É uma empresa extraordinária (…) uma joia brasileira, que não pode ser condenada por um acidente que aconteceu numa de suas barragens, por maior que tenha sido a tragédia. Para isso, peço a compreensão dos senhores.”

Nada ficou de fora do discurso calmo e preciso do executivo: a dor das famílias, as doações de 100.000 reais às vítimas, a história de excelência da companhia, a pronta cooperação com as autoridades, a preocupação com o meio ambiente, o cuidado com os animais atingidos, o reconhecimento de que a empresa falhou (apesar de não saber como) e levou à morte de 179 pessoas —outras 133 continuam desaparecidas. Até mesmo a forma como quer tratar o assunto daqui para frente foi abordada: “não vamos optar por judicialização, vamos optar por negociação como forma de acelerar o atendimento a todos os atingidos.”

A Vale matou. Destruiu o meio ambiente. Admite. Até sente muito. Mas não quer ser punida. Por isso, pede compreensão. Um roteiro longe de ser inovador entre as empresas de todo o mundo.

Um relatório divulgado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2008, feito após a análise de mais de 300 casos de suspeitas de violações de direitos humanos relacionadas com empresas, apontou que a atividade empresarial pode impactar quase todos os direitos humanos. Direta ou indiretamente, empresas matam, escravizam, discriminam, violam direitos civis, dentre outros crimes reconhecidos internacionalmente. E suas punições estão aquém de seus delitos.

A ONU reconhece que os crimes ocorrem onde os desafios de governança são maiores em países pobres, regiões em conflito, locais com democracia frágil ou onde os níveis de corrupção são altos. E o problema é agravado no caso das grandes corporações, cujos negócios atravessam fronteiras, com receitas muitas vezes superiores ao PIB de alguns países, e cuja propriedade é frequentemente pulverizada entre fundos de investimentos, bancos, sócios anônimos e, não raro, o próprio Estado.

É o caso da Vale. A companhia avaliada em quase 300 bilhões de reais —que perdeu cerca de 70 bilhões em valor de mercado dias após o desastre de Brumadinho —tem uma base de acionistas globais diversificada: investidores estrangeiros são donos de 47% do negócio, já os brasileiros (investidores institucionais, pessoas físicas, e até o FGTS) detêm 14,4%. O restante do capital é dividido entre os fundos Litel1, Bradespar, Mitsui&co e BNDESPar.

Essas particularidades fazem com que as discussões sobre punição entrem em um terreno arenoso, tanto em nível nacional quanto internacional. A Constituição Brasileira, no artigo 225 (3º), fala em punição civil (de caráter reparatório), administrativa (como advertência, multa, suspensão da atividade) e penal (geralmente, prisão) para empresas e/ou seus agentes que lesarem o meio ambiente, independentemente da obrigação de reparar os danos causados. A regulamentação deste artigo veio pela Lei 9605/1998 sobre Crimes Ambientais, que dá o norte de como devem ser estas punições. Esta lei, no entanto, não parece ser suficiente para atender a responsabilização penal, pois, na prática, uma vez dada a condenação civil e/ou administrativa, o processo criminal sai de cena.

Proteger, Respeitar e Remediar: voluntariamente

Punir empresas é também um desafio na esfera internacional. Todos os tratados e convenções sobre direitos humanos, que têm valor legal para os países signatários, focam em que Estados e indivíduos não violem os direitos humanos. Esses tratados foram feitos após a Segunda Guerra Mundial, quando o poder de corporações transnacionais ainda não era tão grande, com  objetivo de disciplinar o potencial estatal de causar atrocidades.

Em muitos países, a ação das empresas transnacionais corre à margem das leis. Para começar a tratar a questão, a ONU publicou, em 2011, um guia com princípios orientadores sobre empresas e direitos humanos, que tem como base o dever do Estado em proteger e o das corporações em respeitar. E garante o acesso das vítimas a medidas de reparação efetivas. Mas como o documento é apenas voluntário, ele foi recebido com um misto de esperança e desconfiança. “A crítica é que os princípios são importantes, mas que eles precisam ser obrigatórios. Porque no âmbito do voluntarismo não são suficientes”, afirma Júlia Mello Neiva, representante e pesquisadora da ONG Business & Human Rights.

A pesquisadora defende que as empresas não podem dizer que não sabem o que são os direitos humanos, nem quais os impactos que seus negócios podem causar. “Muitas companhias consideram que o nível ficou muito alto, difícil de alcançar. Mas todas as transnacionais têm planos de direitos humanos e códigos de conduta”, afirma Neiva.

A ONU discute agora a possibilidade de um tratado, com obrigações legais para empresas. E o primeiro rascunho do tratado já está disponível. Mas as discussões ainda emperram no mesmo problema, a mistura de legislação com medidas voluntárias. “Nos últimos 10 anos, os instrumentos voluntários não foram capazes de fazer com que as empresas mudassem suas ações nos territórios onde atuam. Precisaria que esse instrumento fosse obrigatório e associado a políticas de monitoramento do Estado”, afirma Neiva.

Decreto 9.571

Em linha com as discussões na ONU, o Governo Federal publicou, no final de 2018, o Decreto 9.571, que determina as diretrizes nacionais de direitos humanos para empresas. Feito sem diálogo com a sociedade civil, o texto criou polêmica. “O decreto era oportunidade importante para avançarmos na discussão, mas um dos primeiros dispositivos é dizer que é absolutamente voluntário”, afirma Renato Bignami, auditor-fiscal do Trabalho da Superintendência do Trabalho em São Paulo. “E isto não é verdade. Um dos princípios fundamentais do direito é que um particular não pode violar o direito de outro particular, seja ele pessoa jurídica ou física. Como um decreto que é regulamentador começa dizendo que o cumprimento dele mesmo é voluntário? Não encaixa.”

O decreto também determina que as grandes empresas serão responsáveis pela adoção de procedimentos adequados de dever de vigilância (algo conhecido por sua expressão em inglês due diligence). “Seria interessante internalizar este conceito. Mas não adianta nada obrigar empresas a fazerem sua devida diligência, se as instituições que já temos não forem fortalecidas para fazer o monitoramento”, afirma Júlia Neiva.

A criação do selo Selo “Empresa e Direitos Humanos” para companhias que implementarem voluntariamente as diretrizes do decreto também é contestado. “Nossos estudos indicam que processos de certificação têm papel irrisório ou inexistente na promoção de melhores condições de trabalho, por exemplo. O selo servirá apenas como marketing”, afirma o auditor-fiscal.

Bignami acredita que medidas como o decreto voluntário criam insegurança jurídica, que prejudica o ambiente de negócios. “O ordenamento brasileiro já é avançado, mas precisaria de alguns ajustes para deixar claro a responsabilização penal das empresas em relação a violações”, afirma. Ele lembra que no âmbito administrativo, as punições são pesadas, como multas, sanções econômicas. Já no âmbito civil, acredita que o Estado tem conseguido melhorar os mecanismos de reparação. “A questão criminal é mais complexa, por isso é preciso que o ordenamento seja mais claro. Há países que têm Código Penal Empresarial, por exemplo, como a Bélgica”, afirma.

O caso MPT x Shell/BASF

Um caso emblemático foi o acordo histórico que encerrou a maior ação da Justiça do Trabalho no Brasil movida pelo MPT de Campinas, em 2007, contra a Shell/BASF, por negligência na proteção de centenas de trabalhadores em uma fábrica de agrotóxicos em Paulínia, interior de São Paulo.

A Justiça chegou a condenar as empresas a pagarem 1,1 bilhão de reais em indenização. Um acordo no Tribunal Superior do Trabalho (TST), no entanto, fixou em cerca de 200 milhões de reais a indenização por dano moral coletivo para cerca de 1.000 trabalhadores e terceirizados, construção de um hospital, além de atendimento médico vitalício aos trabalhadores e seus filhos.

A Shell iniciou as operações de uma indústria de pesticidas no bairro Recanto dos Pássaros na década de 1970, quando a legislação sobre direito ambiental ainda não existia. Em 2000, a fábrica foi vendida para a Basf e ficou ativa até 2002, quando foi interditada pelo então Ministério do Trabalho e Emprego. Não houve um acidente grave. Foi um processo lento de contaminação do solo, por causa de vazamentos, da água e do ar. Por muito tempo, a empresa insistiu que não havia riscos para a população e que a contaminação estava restrita à sua unidade.

Mas, desde o ajuizamento da ação, foram registrados mais de 60 óbitos de pessoas que trabalharam na fábrica. “O processo, que possui centenas de milhares de páginas derivadas de documentos e laudos, prova que a exposição dos ex-empregados a contaminantes têm relação direta com doenças contraídas por eles anos após a prestação de serviços na planta”, afirma a procuradora do trabalho, Clarissa Ribeiro Schinestsck.

A pesquisadora Cintia Medeiros analisou o caso em “Crimes corporativos contra a vida e necrocorporações”. Segundo ela, a produção da morte pela ação da empresa não foi apenas física. “Existe uma derrota psicológica e moral que acompanha a morte física”, conta. Por exemplo, dos moradores que venderam suas chácaras na área afetada por valor menor e perderam “suas histórias de vida”.

Schinestsck afirma que o foco do MPT não foi buscar só indenização, mas sim “obrigações à tutela integral de saúde”. “Significa muito mais que o dinheiro. Tem relação com a dignidade das pessoas”, afirma. Sobre o valor da indenização, no entanto, ela afirma que “poderia ter sido mais, pelo dano causado”.

O caso foi celebrado como um exemplo de ação bem sucedida para a punição de uma empresa no país. Medeiros lembra, porém, que os custos com indenização são menores do que os lucros que as empresas têm por manter os negócios operando como estão. Parte do preço previamente calculado do “business as usual” (negócios, como sempre). A Vale, por exemplo, calculou que uma vida humana que poderia ser perdida no caso do rompimento de suas barragens valia 2,6 milhões de dólares em um documento interno em que analisa os riscos de suas atividades —este tipo de estudo costuma ser usado na avaliação de companhias sobre quais os riscos elas estão dispostas a aceitar para continuar com o trabalho.

Em nota a Shell informa que, “como todos os brasileiros, encontra-se consternada com o acidente acontecido em Brumadinho”, porém que o caso nas antigas instalações de Paulínia/SP “não encontra nenhum paralelo com as mortes que aconteceram no rompimento da barragem de Brumadinho/MG”.

De acordo com a empresa, o acordo judicial firmado em abril de 2013, não reconheceu “qualquer negligência por parte da Shell e da BASF com relação à saúde dos empregados da antiga fábrica de produtos químicos”. E que a celebração do acordo não prevê “o reconhecimento pelas reclamadas de responsabilidade pelos danos, de qualquer espécie, invocados pelos reclamantes”. A companhia destaca ainda que “apesar de estudos técnicos mostrarem que a contaminação ambiental não impactou a saúde de ex-empregados e seus dependentes”, já vinha prestando assistência médica integral um ano antes do acordo ser homologado no TST. Por fim, “a Shell não reconhece a ocorrência de óbitos relacionados à atividade laboral” na fábrica de Paulínia.

Cultura de direitos humanos

A falta de cultura de respeito aos direitos humanos também é um problema para as empresas. “Vemos desde pessoas mais humildes às mais poderosas violando os direitos humanos. E isso reflete na companhia nacional ou internacional que atua por aqui”, afirma Bignami.

Segundo o auditor, no Brasil é comum a mistificação das empresas como único locus de realização do indivíduo. “A pessoa se identifica de tal maneira com a companhia, que no momento em que surge uma violação grave, a tendência é a pessoa defender a empresa com unhas e dentes.”

Um exemplo foram as manifestações de funcionários da Odebrecht em redes sociais, diante das denúncias de corrupção contra a empresa, em prol da idoneidade de seu acionista, Marcelo Odebrecht. Apenas quando os executivos confessaram os atos de corrupção em delações premiadas é que as manifestações se calaram. “Toda vez que trazemos alguma responsabilização de alguma empresa grande, inevitavelmente vemos uma reação muito negativa por parte dos trabalhadores, como se tivéssemos acusando o pai, a mãe”, conta Bignami. Por isso, não surpreende que muitos instrumentos que deveriam servir para proteger os negócios e evitar violações, como canais de denúncia, não apresentem a efetividade desejada.

Bignami ressalta ainda o problema da crescente ideologização do papel da empresa. “Hoje empresa nenhuma existe para realizar sua função social. A empresa não pode servir apenas para gerar lucro para os acionistas”, afirma. Essa preocupação chegou aos Estados Unidos. No ano passado, a senadora e pré-candidata democrata à presidência, Elizabeth Warren, apresentou um projeto para a criação da Lei do Capitalismo Responsável (Accountable Capitalism Act).

O argumento é que, até o início dos anos 1980, as maiores empresas americanas dedicavam menos da metade de seus lucros aos acionistas e reinvestiam o restante na própria companhia. Ao longo da última década, porém, grandes empresas norte-americanas dedicaram 93% de seus ganhos aos acionistas. O projeto visa a fazer com que empresas com uma receita fiscal superior a 1 bilhão de dólares tenham 40% dos membros de seu conselho de administração eleitos pelos funcionários, e também que 75% dos acionistas e diretores aprovem qualquer gasto político.

Uma espécie de lei para tentar salvar o capitalismo dele mesmo, ampliar a responsabilização das empresas por violações, e quem sabe, assim, reconciliar a força do trabalho com as grandes corporações. Uma ideia a se acompanhar.

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