Observações preliminares da missão da Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale em Brumadinho

A Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale realizou, entre os dias 29 de Janeiro e 5 de Fevereiro, uma missão de observação, solidariedade e apoio no município de Brumadinho, Minas Gerais, frente às graves violações de direitos humanos, econômicos, sociais e ambientais decorrentes do rompimento da barragem de rejeitos da mineradora Vale S.A.. A Articulação é uma rede que congrega, desde 2009, diversos grupos da sociedade civil no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Canadá, Moçambique, com o objetivo central de contribuir no fortalecimento das comunidades em rede, promovendo estratégias de enfrentamento aos danos ambientais e às violações de direitos humanos relacionados à indústria extrativa da mineração, sobretudo decorrentes da atuação da Vale em diversos Estados do Brasil e em outras partes do mundo.

Entre os membros fundadores e mais ativos desta Articulação estão representações de moradores de Brumadinho, como o Movimento pelas Águas e Serras de Casa Branca / Brumadinho, que desde 2010 têm apresentado alertas e denúncias consistentes a respeito das operações da Vale no município. Sua atuação objetivou, inclusive, evitar a concessão da licença ambiental recentemente aprovada para a expansão das atividades da Vale no Complexo minerário Paraopeba.

Durante os sete dias de missão, a Articulação esteve nos principais pontos afetados por esta catástrofe, documentou a atuação dos órgãos públicos envolvidos na assistência às vítimas e seus familiares, e, em especial, procurou compreender a atuação da empresa diante da gravidade das violações perpetradas. Segundo as últimas listas disponibilizadas, o rompimento da barragem de rejeitos em Córrego do Feijão deixou 105 desabrigados, 134 vítimas fatais, e contabiliza 199 pessoas desaparecidas, entre funcionários da mineradora, de empresas terceirizadas, moradores e visitantes das localidades atingidas. Os danos materiais e morais estendem-se também para milhares de outras pessoas. A afetação ao meio ambiente, à fauna e à flora locais e aos ecossistemas associados às bacias hídricas afetadas ainda não podem ser mensurados.

O cenário documentado corresponde, inevitavelmente, a uma fotografia dos primeiros dias após o desastre. A multiplicidade de atores envolvidos, a complexidade das situações vivenciadas e a velocidade dos acontecimentos, impulsionada também pela evidente consternação da sociedade em geral, tornam as observações preliminares desta missão passíveis de mudança. Esta possibilidade de mudança, longe de ser adversa, é um atributo com o qual as observações aqui apresentadas pretendem contribuir e aprofundar.

É imprescindível frisar que os acontecimentos que redundaram no rompimento da barragem de rejeitos da Vale S.A. não são fortuitos e decorrem de um comportamento da empresa que se repete nos diversos locais em que desenvolve as suas operações. A atuação de denúncia de movimentos e ativistas integrantes da Articulação já documentava, incidia e pleiteava providências sobre a política da empresa em diversos temas e regiões, inclusive quanto ao manejo dos rejeitos decorrentes da atividade de extração de minério, seja perante os órgãos consultivos e deliberativos da própria empresa, seja em audiências públicas, reuniões, e também junto à imprensa e às mobilizações da sociedade civil.

No intuito de evidenciar aspectos fundamentais para a defesa da natureza e dos direitos humanos das populações atingidas, a missão da Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale apresenta as seguintes observações preliminares:

1. Existe uma confusão de espaços, atores e missões institucionais nos territórios afetados por este desastre. Isso ocasiona alguns problemas críticos para a população e para a correta aferição das responsabilidades envolvidas. Observamos como especialmente problemáticos:

1.a. O papel atribuído à Vale S.A. como o ator responsável por gerir e divulgar dados de interesse público, imprescindíveis para a investigação deste crime ocorrido no município de Brumadinho. Esta situação verificou-se, em especial, na gestão, compilação e publicização das listas de pessoas vitimadas por esse desastre, que constam tanto no rol de vítimas fatais como desaparecidas. Conferir à Vale S.A., hoje sob investigação criminal, o papel de articuladora e principal informante sobre o estado e condição das vítimas do crime configura uma perversa e descabida inversão de papéis.

1.b. Causa preocupação que porta vozes de órgãos públicos tenham, por diversas vezes, referendado os canais de comunicação da Vale S.A. como fonte de informações sensíveis para os familiares de vítimas e para a população em geral.

1.c. O funcionamento dos postos de atendimento nas localidades afetadas ocorre preponderantemente sob a gestão da Vale S.A.. Esta situação mostra-se particularmente sensível na comunidade de Córrego do Feijão, em que a Vale passou a gerir o espaço da Associação Comunitária local, controlando o acesso, o fluxo de informações e a distribuição de atendimento a partir de sua própria equipe, mantendo sob o seu perímetro de observação a atuação de órgãos públicos, de movimentos sociais, da imprensa, de organizações da sociedade civil e – o que se mostra ainda mais grave – a própria articulação e indignação da população local.

1.d. Situação semelhante foi verificada em Parque da Cachoeira, e mostrou-se ainda mais evidente na Estação do Conhecimento, localizada no centro de Brumadinho. Não apenas o atendimento de órgãos públicos foi alocado dentro de um equipamento de propriedade da Vale S.A., como o processo de triagem do atendimento passa por funcionários da empresa, com poucas exceções. Ou seja, as reclamações, dúvidas e inquietações legítimas da população atingida pela atuação da Vale passam, na grande maioria das vezes, pelo escrutínio da própria empresa antes de chegar ao poder público.

1.e. A confusão de papéis no atendimento à população atingida também envolve a atuação de supostos voluntários nos diferentes postos de atendimento. É flagrante a presença de funcionários da empresa descaracterizados e designados apenas sob a forma de “voluntários”, mascarando a presença da Vale na intermediação da maior parte das demandas que são apresentadas nos postos de atendimento. A falta de clareza e de transparência da empresa na identificação de sua equipe impede que as pessoas que buscam assistência saibam com quemestão lidando, gerando uma proposital confusão de papéis que procura anular o evidente conflito de interesses entre as vítimas e a mineradora.

1.f. Este estado de coisas não é ocasional. A confusão de papéis verificada na ponta da gestão deste desastre é uma decorrência da desmontagem e submissão do Estado brasileiro, em seus múltiplos órgãos e agências, seguindo a agenda do modelo de exploração privatista e neoxtrativista, predominante nas últimas duas décadas. A facilitação e flexibilização que passaram a beneficiar a instalação e operação destes empreendimentos conectam-se, do outro lado da catástrofe, com a autorização implícita para que a Vale S.A. concentre em si os processos de decisão e gestão das demandas das pessoas atingidas pelo rompimento da barragem.

2. A iniciativa da empresa de oferecer a familiares de pessoas reconhecidamente mortas ou ainda desaparecidas, de modo imediato, a quantia de 100 mil reais, a título exclusivo de doação, sem encargos aos destinatários e sem caracterizar a antecipação da devida indenização, atende, em alguma medida, o mínimo de celeridade e respeito que são devidos às famílias mais diretamente afetadas por este desastre. Há, no entanto, preocupações com a forma e os desdobramentos da medida implementada:

2.a. Causa estranheza que a Vale S.A. tenha se negado a fornecer uma cópia da minuta do termo pelo qual firma com as famílias afetadas este contrato de doação. A missão entende que se trata de um assunto de interesse público, e que é papel das organizações que atuam por meio da Articulação, bem como de outras organizações e instituições, zelar pelos direitos das populações atingidas. Neste sentido, monitorar o modo como se dá a formalização destes contratos é essencial para garantir que não haja qualquer direito sendo suprimido nesta pactuação.

2.b. Por outro lado, as exigências estabelecidas pela empresa para o efetivo acesso das famílias à referida quantia, baseadas em um conceito de família que não necessariamente se observa na realidade, podem estar impondo a essas pessoas tarefas extras para a obtenção de documentos, gerar embaraços intermináveis e inclusive, em alguns casos, inviabilizar o efetivo recebimento do recurso, como no caso de companheiros(as) que mantinham uma união estável não formalizada e que não tiveram filhos com a pessoa falecida ou desaparecida.

2.c. Cabe ainda salientar que persiste um cenário de desassistência a pessoas que sofreram danos de outra natureza. Passados mais de dez dias desde o rompimento da barragem, há ainda pessoas que não contam com pronta resposta à perda da sua moradia ou modo de vida, permanecendo em situações de improviso em hotéis da cidade, ou sem resposta sobre a perda de suas áreas de cultivo e criação.

2.d. A divulgação, pela imprensa, de outras modalidades de doação, nos valores de 15 e 50 mil reais, ainda não conta com informações mais precisas por parte da empresa sobre como isso será efetivado e a quem realmente se destinará. Segundo o noticiário, a Vale disponibilizaria a quantia de 50 mil reais para as famílias que moravam na “zona de autossalvamento, anteriormente usada pela empresa em seu plano de emergência para a barragem”, e a quantia de 15 mil reais para quem “não morava nesta região, mas desenvolvia alguma atividade rural ou comercial previamente cadastrada pela Vale”. Causa preocupação que a empresa utilize algum tipo de cadastro prévio seu, desconhecido da sociedade em geral, como critério para a efetivação desta doação, o que pode vir a significar a redução dos potenciais destinatários dessas doações.

3. É patente a falta de transparência e de compromisso com a verdade decorrente da recusa por parte da empresa Vale em trazer a público o plano de emergência para o caso de colapso da estrutura da barragem, bem como os laudos que, segundo ela, teriam atestado a sua estabilidade. Tal conduta implica violação ao direito de todo e qualquer cidadão ou cidadã ao acesso a informações de inegável interesse público.

3.a. A insistência em manter tais informações distantes do escrutínio público reforçam as suspeitas de que existiam falhas graves na elaboração de tais documentos ou na implementação pela própria empresa das medidas neles previstas. Essas suspeitas ganham maior sustentação com a constatação de que tal plano e laudos não evitaram que: (1) a sirene fosse “engolfada pela queda da barragem antes que ela pudesse tocar” (nas palavras do diretor presidente da empresa); (2) os escritórios e o refeitório estivessem posicionados perto da barragem e (3) a destruição do acesso a uma das rotas de fuga que a empresa apontou como seguras durante treinamento.

4. O fato trágico ocorrido no último dia 25 de Janeiro revela uma falta clara de zelo, preocupação e responsabilidade quanto às obrigações da Vale S.A. no âmbito da segurança de seus trabalhadores. Isto é outro fato a ser considerado pelas instituições públicas e entidades de representação dos trabalhadores não apenas em Brumadinho, mas em todos locais onde a empresa opera.

5. A missão enaltece a atuação aguerrida e abnegada de um sem número de servidores públicos, que, apesar das carências estruturais dos órgãos a que estão vinculados, têm despendido esforços desmedidos para atender às vitimas, às suas famílias, e a toda a população da cidade de Brumadinho. Isto também se verifica na atuação de inúmeras pessoas que tem colaborado, de forma verdadeiramente solidária, para socorrer e acolher os atingidos por esta catástrofe.

6. Embora o monitoramento dos danos ambientais não fosse o objeto direto da missão realizada, a Articulação permanece atenta e vigilante no que concerne a correta apuração e reparação das perdas da biodiversidade e da afetação aos diferentes ecossistemas e fontes de água potável, usada para o abastecimento e irrigação.

7. A atuação da imprensa desde o rompimento da barragem de rejeitos da Vale em Brumadinho tem sido um fator essencial para a efetiva cobrança e apuração das responsabilidades por este crime. É essencial que a cobertura da imprensa permaneça no decorrer do tempo, sensibilizando pessoas nas diferentes partes do país e do mundo a demandarem justiça por Brumadinho.

8. Embora o acompanhamento da investigação criminal não tenha constado entre os objetivos dessa missão, a articulação observa a importância de que os órgãos e agentes responsáveis atuem de maneira prioritária, ágil e diligente em vista de uma rápida identificação e responsabilização de todos os envolvidos nesse trágico evento.

9. No decorrer do tempo, outros danos decorrentes deste desastre se mostrarão ainda mais graves para a população de Brumadinho e de outros municípios. A dificuldade de mobilidade causada pela destruição de vias, a desvalorização dos imóveis, a queda de faturamento de comerciantes, dentre outros danos associados ao rompimento da barragem, podem e devem ser creditados à atuação da Vale neste território de reconhecida vocação para o turismo e outras formas de geração de renda.

10. Salienta-se, por fim, que a catástrofe ocorrida em Brumadinho tem direta relação com um comportamento ativo da Vale S.A. na desqualificação, silenciamento, monitoramento e criminalização de defensores de direitos humanos e ambientais. Esta prática não se restringe aos movimentos locais do município de Brumadinho, os quais vêm, de longa data, incidindo junto à empresa e aos órgãos públicos sobre os danos presentes e futuros de seus empreendimentos. Ao contrário: trata-se de uma prática consolidada, que encontra paralelo em todos os lugares onde a Vale atua. O silenciamento da crítica promoveu a perda irreparável que hoje faz doer nas mais diversas partes do país e do mundo.

Pelo exposto, a Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale, que tem entre seus membros acionistas críticos, apresentou junto ao Conselho de Administração e ao Conselho Fiscal da empresa pedidos de imediata destituição da Diretoria Executiva da Vale S.A. e pronta convocação de Assembleia Geral Extraordinária, para tratar exclusivamente da responsabilidade da empresa por mais este desastroso evento.

Expressamos, ainda, a nossa irrestrita solidariedade à toda a população do município de Brumadinho, às famílias que sofrem a perda de seus entes queridos, àquelas que aguardam notícias. Não há mesmo palavras diante de tamanha dor.

Reafirmamos, enfim, o nosso comprometimento e apoio permanente à atuação dos movimentos e associações locais em todas as suas reivindicações, com vistas à reparação integral dos direitos violados e recuperação ambiental da área atingida.

Brumadinho, 5 de Fevereiro de 2019.

Missão da Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale

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