Piquiá de Baixo: a ideologia do crescimento econômico e do lucro a qualquer preço gera uma sequência de calamidades e a necessidade de medidas urgentes
No dia 16 de março, a comunidade de Piquiá de Baixo (Açailândia, Maranhão, Brasil) foi alagada e permaneceu por alguns dias debaixo da água.Devido às fortes chuvas, romperam-se as barragens de vários açudes de criação de peixes nas fazendas a montante do rio Piquiá, provocando uma violenta enchente, que invadiu as casas da comunidade, desabrigou 253 pessoas e destruiu pelo menos 25 casas. Os moradores e moradoras perderam muitos de seus pertences.
Atualmente, ainda 17 famílias permanecem desabrigadas e sem teto. As estruturas comunitárias locais (igrejas, Clube de Mães, Escola) estão servindo de ponto de apoio para as pessoas se abrigarem e guardarem os pertences que conseguiram retirar.
A BR 222, que une o sul do Maranhão à capital São Luís e outras cidades do nordeste, foi atingida pela força das águas, que abriram uma ampla voçoroca no asfalto, precisando de vários dias para voltar a garantir a circulação através do estado. As pontes ferroviárias que passam sobre a comunidade podem estar com suas estruturas comprometidas.
Essa é mais uma tragédia que veio afetar uma comunidade já bastante atingida por quase 35 anos de impactos negativos e violações de direitos provocados pela poluição decorrente das operações de mineração da Vale S.A. e da produção de ferro gusa, aço, cimento e energia termoelétrica pelas empresas siderúrgicas que se instalaram em Piquiá, no contexto do Programa Grande Carajás. Corresponsável destas violações é o poder público, por sua cumplicidade, omissão e descaso, ausência de fiscalização e respeito às leis ambientais, falta de apoio e de medidas efetivas quanto às denúncias, propostas e ações reparatórias reivindicadas pelos moradores e moradoras da comunidade
Assim, neste mês de março 2020, os moradores estão cercados pelas águas, afetados pela poluição, prejudicados em suas condições respiratórias e, ainda, ameaçados pela possível chegada do Coronavírus.
A atual abnegada e solidária ação de moradores/as da comunidade com o apoio admirável de algumas instituições, cidadãos e cidadãs de Açailândia, foi fundamental para atender às necessidades básicas das famílias atingidas.
O reassentamento de Piquiá é uma das ações exigidas pela comunidade como parte de um plano maior de reparação integral pelos danos sofridos, e prevenção para novas tragédias. A construção do novo bairro, Piquiá da Conquista, começou em novembro de 2018 e avança de maneira exitosa, em regime de autogestão, sob a condução dos próprios moradores, por meio de sua associação comunitária e assessoria técnica.
No entanto, apesar da mobilização popular, de denúncias por organismos e entidades nacionais e internacionais, das sentenças condenatórias em ações indenizatórias, posicionamentos formais da ONU frente ao Estado brasileiro, visita in loco do Relator Especial das Nações Unidas para substâncias e resíduos tóxicos e muitas outras iniciativas que deram forte visibilidade e consistência ao caso, o reassentamento corre o sério perigo de interromper-se, por falta de recursos.
A comunidade de Piquiá de Baixo pode ser condenada a viver em estado permanente de calamidade, sendo desmontadas as soluções que a própria comunidade, corajosa e insistentemente, vem apresentando ao poder público e às empresas.
Neste contexto trágico, recomendamos com indignação, vigor e extrema urgência a seguinte série de providências e resoluções:
Assistência emergencial pela enchente
- abrigo e segurança para as famílias sem teto: garantia de aluguel social em imóveis escolhidos pelas próprias famílias, com critérios de segurança;
- medidas de garantia de segurança alimentar para todos os moradores/as afetados, coordenando-se as ações do poder público e a solidariedade dos cidadãos de Açailândia;
subsídios para a reforma das casas danificadas e para a reparação ou substituição dos móveis que tenham se estragado; - recuperação rápida da rodovia BR-222 e garantia imediata de outras vias de acesso dos moradores/as de Piquiá de Baixo à cidade de Açailândia sem custos adicionais aos moradores, mesmo que seja necessária a expropriação de áreas particulares;
intensificação do trabalho da Secretaria Municipal de Saúde em Piquiá de Baixo, monitoramento das condições de saúde física e psicológica dos moradores/as e particular prevenção na perspectiva de possíveis epidemias virais; - inclusão da Associação Comunitária dos Moradores do Pequiá (ACMP) na Força Tarefa instituída pelo Município de Açailândia com a Portaria no. 403/2020, para garantir o protagonismo dos moradores/as na definição das ações de suporte emergencial às vítimas;
Prevenção de novos desastres
Não é a primeira vez que as barragens dos açudes para criação de peixe nas fazendas a montante do rio Piquiá se quebram. Dependendo da intensidade das chuvas, a ruptura de uma delas pode provocar danos em cadeia nos açudes a jusante, despejando enormes quantidades de água na lagoa ao lado da comunidade de Piquiá de Baixo.
Requeremos à secretaria Municipal de Meio Ambiente de Açailândia a fiscalização de todos os açudes da região, com licenciamento de sua construção e manutenção, bem como a responsabilização de seus proprietários em caso de novos danos.
Reassentamento de Piquiá de Baixo (construção do Piquiá da Conquista)
São mundialmente conhecidas as recomendações da OMS e das autoridades sanitárias do Brasil quanto às medidas de prevenção do contágio e de combate à propagação da transmissão da COVID-19.
Em 19 de março de 2020, foi declarado estado de calamidade pública no Estado do Maranhão (Decreto Estadual n° 35.672) em virtude do aumento do número de infecções pelo vírus H1N1, da existência de casos suspeitos de contaminação pela COVID-19, bem como da ocorrência de chuvas intensas em determinados municípios do Estado, Açailândia incluído.
Em 21 de março de 2020 o Governo do Estado do Maranhão expediu o Decreto no. 35.677/2020, que proíbe a realização de atividades e serviços não essenciais, com o objetivo de evitar a aglomeração de pessoas.
Embora as determinações governamentais não se refiram expressamente às obras de construção civil no Estado do Maranhão e apesar da necessidade das famílias de contarem com uma nova casa no prazo mais curto possível, a Associação Comunitária dos Moradores do Pequiá, juntamente com sua assessoria técnica, USINA-centro de trabalhos para o ambiente habitado, entidades responsáveis pela obra de construção do Piquiá da Conquista, viram-se na obrigação de optar pela interrupção temporária das obras.
Essa medida visa à preservação da saúde dos trabalhadores/as e à redução dos prejuízos diante da já anunciada interrupção dos repasses de recursos pelo Governo Federal / Caixa Econômica Federal.
Com a oneração de custos imposta pelas novas circunstâncias, deve ser garantido o reequilíbrio econômico-financeiro do contrato estabelecido entre a União Federal e a ACMP, com o aporte de recursos adicionais ao orçamento inicialmente previsto; o Governo Federal e a Caixa Econômica Federal devem garantir a pontualidade e segurança no repasse de todas as parcelas do Fundo de Desenvolvimento Social estabelecidas para a obra; a Vale S.A. e a Fundação Vale devem garantir a pontualidade e segurança no repasse dos valores já estabelecidos em contrato; as empresas siderúrgicas, a companhia Vale S.A., os Governos Federal, Estadual e Municipal devem destinar fundos adicionais para cobrir o déficit orçamentário existente desde a aprovação do projeto e que tende a aumentar a partir de agora; considerada a situação de calamidade em que se encontram os moradores/as de Piquiá de Baixo, sejam anuladas as parcelas de contribuição que cabem aos moradores/as, segundo as regras do Programa Minha Casa Minha Vida.
Assistência emergencial pela ameaça do Coronavírus
No último dia 11 de março, a Organização Mundial de Saúde declarou que a humanidade vive sob uma pandemia do novo Coronavírus. O número de casos tem se multiplicado a cada dia no Brasil. Até o momento, o Brasil tem 1.546 casos confirmados e 25 mortes. Destes, 02 casos confirmados de pessoas acometidas por COVID-19 no Estado do Maranhão, enquanto que 04 casos são monitorados como suspeitos no município de Açailândia. Infelizmente, a tendência é de aumento exponencial do número de casos nas próximas semanas em todo o país.
Grande parte dos moradores/as de Piquiá de Baixo trabalham no setor informal e/ou por conta própria e não podem trabalhar em casa. Por isso, dependem de apoio do Estado para poder ficar em casa e garantir a sua segurança alimentar, higiene pessoal e sobrevivência.
Além disso, a provável interrupção da obra de construção do Piquiá da Conquista afetará a renda de várias famílias da comunidade, já que vários trabalhadores da obra são da própria comunidade.
Por fim, há que se recordar que, por conta da histórica exposição à poluição do ar e às doenças respiratórias crônicas dela decorrentes, todos os moradores e moradoras de Piquiá de Baixo, independentemente da idade, encontram-se no chamado grupo de risco, o que dificultará sua recuperação caso contraiam o novo Coronavírus.
Dessa forma, é preciso que:
– seja mantido e intensificado o serviço público de atendimento à saúde dos moradores/as;
– os serviços de abastecimento de água, fornecimento de energia elétrica e de coleta de lixo na comunidade sejam contínuos, independentemente da regularidade do pagamento pelos moradores;
– seja adotada uma renda básica a cada um dos moradores e moradoras de Piquiá de Baixo seguindo a recomendação do Sr. Juan Pablo Bohoslavsky, relator especial da ONU sobre os efeitos da dívida externa nos direitos humanos.
Segurança da ponte ferroviária
As enchentes muito provavelmente afetaram também a estrutura das pontes ferroviárias que passam sobre a comunidade. Essas pontes integram a Estrada de Ferro Carajás, sob concessão da Vale S.A., e são utilizadas para o transporte de minério de ferro, combustíveis e outros bens. Diante disso recomendamos:
– seja determinada a realização de perícias por profissionais habilitados e independentes a fim de averiguar a situação das estruturas das pontes, os riscos de desabamento e as medidas para restabelecer a segurança, caso necessário;
– a imediata suspensão do tráfego de trens de carga até que se confirme por profissional habilitado e independente que as referidas pontes não correm risco de ruir e/ou sejam concluídas as obras necessárias para essa finalidade.
Atividades poluidoras e causadoras de doenças em Piquiá
As atividades de produção de ferro gusa, aço, cimento e energia termoelétrica em Piquiá são reconhecidamente causadoras de adoecimento da população e de doenças respiratórias na região.
O estado de emergência e de calamidade em saúde pública em que se encontra a população como um todo e, em especial, a comunidade de Piquiá de Baixo, demandam medidas rigorosas para a garantia do direito à saúde de todos e todas.
Não se pode permitir que este direito seja sacrificado pelos interesses econômicos e a sede de lucro das empresas. Tampouco, que a população seja obrigada a colocar em perigo sua saúde e suas vidas pela necessidade de trabalhar, se alimentar e sobreviver.
Voltamos veementemente a recomendar a execução de todas as recomendações sobre o direito à saúde a ao meio ambiente saudável apresentadas no relatório da Federação Internacional dos Direitos Humanos em 2011, e ainda em boa parte inescutadas.
Solidariedade e apoio nacional e internacional
Apelamos às entidades parceiras e às pessoas em geral para:
- Divulgar as notas de apoio a Piquiá de Baixo;
- Participar das campanhas de arrecadação de fundos para possível reparação das casas que foram danificadas e para o reassentamento da comunidade;
- Remeter comunicações às autoridades federais, estaduais e municipais para que atendam sem demora às demandas da comunidade, inclusive das famílias que não serão contempladas no reassentamento;
- Enviar mensagens de solidariedade e apoio à Associação Comunitária dos Moradores do Pequiá;
- Fazer conhecer a luta firme e digna desta comunidade, através dos sites piquiadebaixo.com.br e www.justicanostrilhos.org
- Esta luta é nossa, esta luta é do povo. É com justiça que se faz um mundo novo!
Piquiá, 23 de março de 2020.
Associação Comunitária dos Moradores do Pequiá
Justiça nos Trilhos
USINA CTAH
Paróquia Santa Luzia de Piquiá
Missionários Combonianos
Rede Igrejas e Mineração