Povos indígenas e quilombolas se reúnem em Itabira para fazer frente a novo projeto predatório da Vale

Encontro aconteceu entre os dias 1 e 2 de julho, e contou com a participação de entidades e movimentos sociais, além da deputada federal Célia Xakriabá e da deputada estadual Bella Gonçalves

Entre os dias 1 e 2 de julho, mais de 80 pessoas se reuniram na Paróquia Nossa Senhora da Conceição Aparecida, no bairro João XXIII, em Itabira, Minas Gerais, para discutir os potenciais impactos do Projeto Serra da Serpentina, da Vale, que pretende extrair e exportar 47 milhões de toneladas de minério de ferro bruto por ano, ao longo de 39 anos, da região da Bacia Hidrográfica do Rio Santo Antônio. Entre os participantes estavam representantes de povos indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais potencialmente impactadas, ambientalistas, a deputada federal Célia Xakriabá (PSOL/MG), a deputada estadual Bella Gonçalves (PSOL/MG), representantes do mandato da deputada federal Duda Salabert (PDT/MG), do Partido Comunista Brasileiro (PCB), da União da Juventude Comunista (UJC) e do PSOL de Itabira. Também participaram membros de movimentos e entidades que atuam junto a povos e comunidades atingidos pela mineração e outros empreendimentos, como a Comissão das Comunidades Quilombolas do Alto e Médio Rio Doce, Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale (AIAAV), Brigadas Populares, MAM (Movimento pela Soberania Popular na Mineração), Instituto Cordilheira, MovSAM (Movimento pelas Serras e Águas de Minas), Gesta/UFMG (Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais/Universidade Federal de Minas Gerais), OCDOCE/Unifei (Observatório dos Conflitos e Confluências Rurais da Bacia do Rio Doce), Cedefes (Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva), Acaó (Associação de Conservação Ambiental Orgânica), de Santa Maria de Itabira, Cáritas, Associação de Defesa e Desenvolvimento Ambiental de Ferros (Addaf), Frente Mineira de Luta das Atingidas e Atingidos pela Mineração (Flamaa-MG) e Comitê Popular dos Atingidos pela Mineração em Itabira e Região.

De acordo com o Relatório de Impacto Ambiental (Rima) feito pela Vale, o empreendimento compreende uma cava principal e 18 cavas satélites em uma área de 1.950 hectares nos municípios de Conceição do Mato Dentro, Morro do Pilar e Santo Antônio do Rio Abaixo, além de uma Unidade de Tratamento de Minerais (UTM) e grandes pilhas para a disposição de estéril e rejeitos. O minério seria transportado através de um mineroduto de 115 quilômetros, saindo de Conceição do Mato Dentro até um terminal a ser construído no município de Nova Era, de onde seria embarcado na Estrada de Ferro Vitória a Minas (EFVM). Se concretizado, o Projeto Serra da Serpentina irá impactar 11 municípios, incluindo 51 comunidades tradicionais – entre as quais uma terra indígena, 12 territórios quilombolas certificados pela Fundação Cultural Palmares (FCP) e outros quatro em processo de delimitação pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).

Empresa nunca ouviu as comunidades

No primeiro dia de atividade foram apresentadas análises críticas sobre o projeto a partir das informações disponibilizadas pela empresa em seu Rima. Já o segundo dia de atividade foi dedicado à construção coletiva de estratégias e alianças para fazer frente ao projeto.

Uma fala comum entre as participantes do evento é que as únicas informações que tinham sobre o empreendimento vieram de entidades e movimentos que acompanham o tema da mineração e tiveram acesso ao Rima, e de “boatos” que começam a chegar nas comunidades. Além dos diversos impactos ambientais, sobretudo em relação à água, poeira, trânsito de carretas e outros que afetam diretamente a biodiversidade e a conservação natural, os moradores das comunidades potencialmente impactadas temem que novos crimes-tragédia protagonizados pela Vale, como os de Mariana e Brumadinho, se repitam.

A Vale nunca ouviu previamente os povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais potencialmente impactados pelo empreendimento para elaborar seus estudos e solicitar licenças ao poder público estadual, como determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A consulta, que precisa ser prévia, livre, informada, consentida e de boa fé, deve ser feita sempre que existam medidas legislativas, administrativas ou instalação de empreendimentos que possam afetar esses povos e comunidades.

A verdade por trás dos termos técnicos

Um dos grandes desafios enfrentados pelas comunidades ameaçadas pelo Projeto Serra da Serpentina é conseguir ter a dimensão real dos estragos que ele pode causar caso saia do papel. A linguagem técnica e a ausência de parâmetros comparativos de quantidades e dimensões no Rima da empresa acabam por amenizar ou mesmo falsear os impactos. Qual o volume de água, em litros, a ser retirado da população pela empresa para escoar minério de ferro pelo mineroduto? Quais outorgas de uso de água são previstas? Quantas pessoas por dia essa água poderia saciar? O que acontecerá com nascentes, poços, rios e riachos com a captação desta água? Qual a extensão de terras ocupadas pelas cavas e quantos imóveis serão desapropriados? Em termos de volume, o que significa retirar e transportar 47 milhões de toneladas de ferro por ano?

Estas foram algumas das perguntas respondidas após o encontro em Itabira pelo engenheiro hídrico Kalahan Battiston, especialista em Gestão de Áreas Contaminadas pela Universidade de São Paulo (USP), que encampou o desafio de traduzir as informações técnicas fornecidas pela empresa em dados que podem ser mais palpáveis para não especialistas.

As afirmações a seguir foram sistematizadas por Battiston a partir do Rima da Vale, feito pela empresa AMPLO em julho de 2022, e “traduzidas” em exemplos e números mais próximos da realidade do dia a dia das comunidades.

Exploração Mineral

– 11 municípios serão atingidos. A Vale já comprou mais de 25 imóveis dos 205 que serão impactados pelo projeto (pg. 61)

– As cavas em sequência ocuparão cerca de 30 km extensão linear ao longo da Serra da Serpentina; (pg. 11)

– Serão retirados 47 milhões de toneladas de minério de ferro bruto por ano ao longo dos 39 anos. Esse volume pode encher cerca de 470 mil vagões de trem por ano e 18,33 milhões de vagões até o final do projeto; (pg.12)

– As cavas estão a cerca de 18 Km da APA Campo Redondo; (pg.94)

Questão Hídrica

– Apenas o mineroduto vai retirar da população 8,6 bilhões de litros de água por ano, e 335 bilhões de litros até o fim do projeto. Isto daria para abastecer 160 mil pessoas por dia com água potável; (pg.7 e pg.12)

– A Vale pretende retirar da bacia hidrográfica para atender seu projeto cerca de 51 milhões de litros de água por dia durante 39 anos. Toda esta água potável daria para abastecer, todo dia, cerca de 340 mil pessoas com água de qualidade; (pg.112)

– As águas da região diminuirão em 28% até o final do projeto, ou seja: 1/3 das águas serão esgotadas pela Vale, e não retornarão; (pg.112)

– No Rima, a empresa afirma que acontecerá o rebaixamento do nível das águas de vários córregos e rios e o assoreamento de muitos deles, assim como mais de 32 nascentes irão secar; (pg. 112)

– Há grande risco de secar parte dos córregos e nascentes ao redor das cavas, são eles: Faia, Rocinha e Serrinha, assim como a cabeceira do ribeirão Axupé; (pg.112)

– Das 37 comunidades ditas como impactadas, 35 dependem de poços artesianos. Estas comunidades correm grande risco de ficar sem água, pois é do mesmo aquífero dos poços artesianos que a Vale pretende bombear água para seu projeto; (pg.69/72)

– Há grande risco de contaminação das águas subterrâneas através da drenagem ácida, que se dá pela exposição dos metais naturais do solo com o ar, e com as águas que afloram dentro das cavas, que são as mesmas águas subterrâneas de poços e nascentes;

Território

– As áreas de Influência Indireta impactadas pela Vale S.A. (áreas que provavelmente serão afetadas na questão hídrica, fauna, etc.) afetam territórios de Unidades de Conservação, como algumas APA’s do Parque Nacional da Serra do Cipó. (pg.94)

Acionismo crítico

O encontro realizado em Itabira foi a segunda grande ação coletiva de resistência ao Projeto Serra da Serpentina empreendida pelos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais da Bacia Hidrográfica do Rio Santo Antônio e entidades de apoio.

Em abril deste ano, uma representante de comunidades quilombolas e indígenas do Alto e Médio Rio Doce, com apoio da Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale (AIAAV), comprou uma ação e tornou-se acionista crítica da empresa para ter direito de voz e voto durante a assembleia geral anual da Vale, que aconteceu no final daquele mês.

Durante a assembleia, realizada de forma virtual, a representante denunciou aos demais acionistas os potenciais impactos do novo empreendimento e as violações já cometidas pela Vale no Projeto Serra da Serpentina ao ignorar o direito à consulta prévia aos povos e comunidades tradicionais garantido pela Convenção 169 da OIT. A denúncia ficou registrada em ata, e a mineradora, assim como seus demais acionistas, não podem alegar desconhecer a violação e nem os impactos que podem gerar às comunidades com este novo projeto. A participação da acionista crítica na assembleia geral da Vale foi precedida por uma campanha virtual com as hashtags #EuExisto e #ForaProjetoSerpentina no Instagram da Articulação dos Atingidos e Atingidas pela Vale.

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