Os problemas que ameaçam as vidas das populações do Brasil e do mundo não tiveram origem na pandemia do novo Coronavírus. A grave crise sanitária, desvelada no final de 2019, expôs ao mundo a imensa desigualdade e a profunda ausência de direitos de parcela considerável da população, que não tem condições mínimas de vida para enfrentar a contaminação pela Covid-19.
Um grupo social muito fortemente afetado pela crise, com problemas preexistentes e agora agravados pela pandemia, são os moradores de regiões atingidas pela atividade da mineração. Um exemplo disso é a comunidade de Santa Cruz, na zona oeste do Rio de Janeiro, onde as operações da siderúrgica Ternium Brasil, antiga TKCSA, impactam uma população de aproximadamente 217.333 pessoas desde 2010.
A empresa faz parte do Grupo Techint, conglomerado ítalo-argentino fundado em 1945. No Brasil, a Ternium faz parte de entidades de classe como a Associação Brasileira dos Investidores em Autoprodução de Energia (Abiape), o Instituto Aço Brasil e a Associação Brasileira de Metalurgia (ABM), que controlam o setor siderúrgico, energético e mineral do país.
Segundo a campanha Pare Ternium, “a trajetória da CSA/Ternium Brasil tem sido marcada pela violação de direitos trabalhistas, pela prática de intimidação, cooptação e criminalização de lideranças e pesquisadores/as que são críticos ao empreendimento e pela produção de impactos negativos ao meio ambiente e à saúde de homens, mulheres e crianças. A empresa é alvo de 238 ações, onde são apontados os impactos ocasionados pela linha férrea, por doenças relacionadas à emissão do material particulado na atmosfera e pelo alagamento do conjunto habitacional de São Fernando, decorrentes da terraplanagem realizada pela siderúrgica na fase de instalação do empreendimento”.
A siderúrgica é responsável por elevar em 76% as emissões de CO2 na cidade do Rio de Janeiro. E o movimento denuncia ainda o alto consumo de água pela indústria do aço. Enquanto a população do estado do Rio de Janeiro sofre com a falta de acesso a água em meio à pandemia da Covid-19, a Ternium consome 1 bilhão e meio de litros de água por dia para produção de aço. Para se ter uma referência, cada habitante do Rio de Janeiro consome 248 litros de água por dia.
Coronavírus agrava problemas já existentes
A cada dia, os números de infecções e mortes pelo coronavírus assusta e lança uma série de incertezas sobre o futuro. Até o momento da produção desse artigo, o mundo registrava mais de 5 milhões e 600 mil contaminados, e mais de 350 mil mortes por conta da Covid-19. A essa altura, o Brasil já ocupa a segunda posição no número de contaminados e a segunda posição em número de mortos pela doença: mais de 400 mil confirmações e mais de 25 mil mortes.
Só o estado do Rio de Janeiro amarga mais de 4.600 mortes e 40 mil contaminados até a data. E a zona oeste da capital, onde está localizado o bairro de Santa Cruz, é a mais afetada, com mais de um terço do número de infectados no estado.
Aline Marins, do Coletivo Martha Trindade, de jovens de Santa Cruz, relata como está a situação no bairro, a partir dos primeiros casos de contaminação.
“Tem muitos relatos de contaminação, de gente aqui da minha rua mesmo e de mortes também. Uma pessoa da minha rua já morreu e outras pessoas do conjunto também já morreram. E enquanto isso, a Ternium continua funcionando normalmente. As pessoas que eu conheço e que trabalham lá estão indo ao trabalho. Tudo continua como se nada tivesse acontecendo, como se não estivéssemos vivendo uma pandemia”.
Enquanto a sociedade se organiza para atravessar um dos momentos mais difíceis da história, a siderúrgica Ternium segue em pleno funcionamento, amparada pela Portaria 135/GM, do Ministério de Minas e Energia, que declarou todos os segmentos do setor mineral como serviço essencial. Logo, essa portaria foi depois endossada pelo governo federal por meio do Decreto 10.329/2020.
A continuidade das operações coloca em risco toda a população de Santa Cruz, principalmente os trabalhadores da siderúrgica, que já têm histórico de doenças respiratórias relacionadas ao contato com poluentes.
Jaci Nascimento, morador do bairro, conta que já tem problemas respiratórios causados pelo contato com a contaminação da siderúrgica, e agora enfrenta o medo da contaminação pelo novo coronavírus, enquanto a Ternium segue suas atividades.
“A empresa continua funcionando… ela continua jogando essa poluição em cima da gente, o problema respiratório aqui da população está difícil. As pessoas já estão cheias de problemas de saúde e ainda tem esse problema de coronavírus…eu não tenho um pulmão, tenho a metade de um último pulmão…então já tenho esse problema respiratório e a empresa continua com essa poluição aqui na localidade (…) A empresa, ela poderia, já que ela veio e plantou em cima da gente, era pra bater por casa a casa aqui, não só a minha nem de outro pescador, de cada morador daqui e beneficiar essas pessoas que moram aqui e recebem a poluição dela diariamente.”
Marina Praça faz parte do Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS), organização que acompanha a luta no territórios desde o começo das obras para instalação da planta siderúrgica no bairro de Santa Cruz. Segundo ela, a empresa tem um histórico de forte investimento na construção de uma imagem aprazível, mas a situação de pandemia é mais um exemplo de como a negligência com a saúde da população do local e dos trabalhadores vem sendo a regra das políticas adotadas. Em veículos de comunicação nacionais, a siderúrgica se gaba de ações e doações milionárias “para o combate à pandemia”, sem mencionar o risco que representa a continuidade de suas operações.
“Embora a empresa, em seu site, afirme que está aplicando o home office, nós sabemos que essa medida atinge apenas os funcionários de alta patente, pois ao mesmo tempo ela afirma que as medidas de segurança se darão, mas que a continuidade operacional não poderá ser afetada. Nós denunciamos a continuidade das operações da Ternium nesse território que já é um território de alto risco, porque tem um sistema de saúde altamente deficitário e uma população que enfrenta já muitas precariedades devida a falta de assistência pública e o fato de serem vizinhas da maior siderúrgica da américa latina, aumentando exponencialmente os problemas à saúde. Assim, enquanto o mundo vive essa pandemia, a empresa está muito mais preocupada com a continuidade operacional do que com a realidade de Santa Cruz e a saúde de seus trabalhadores e trabalhadoras”, denuncia.
No site da empresa constam ações para contenção da Covid-19, como doações para compra de equipamentos hospitalares e algumas medidas internas. Mas em um contexto de pandemia e com um vírus transmitido tão facilmente, nos perguntamos: a manutenção do lucro vem antes da vida dos trabalhadores e das trabalhadores? É suficiente adotar medidas que mais contribuem para a imagem da empresa do que para a proteção das pessoas?
A Ternium não está sozinha
Outras empresas do setor minerário tem mantido suas operações como se nada estivesse ocorrendo no mundo. E os resultados disso é devastador. Recentemente, a Petrobras teve que paralisar a produção em duas plataformas de petróleo no Ceará depois que 42 dos 45 trabalhadores de uma plataforma localizada no Ceará foram contaminados pelo coronavírus. Até o momento, são mais de 800 casos confirmados e 1642 suspeitos, entre os trabalhadores da estatal petroleira.
Os números ainda são imprecisos, mas situações específicas já demonstram o grave risco à saúde pública, caso o setor da mineração siga obrigando os seus trabalhadores a se exporem à contaminação. Matéria do Observatório da Mineração, de 27 de maio, denuncia uma “explosão” de casos entre trabalhadores da mineradora Vale no município de Paraupebas, no Pará. Segundo a publicação, a prefeitura anunciou 1603 casos confirmados e 61 mortes por Covid-19, mas alerta que os números podem ser ainda maiores, e o município já enfrenta um colapso no sistema de saúde.
Para denunciar o evidente descaso das empresas relacionadas à mineração com seus trabalhadores e, finalmente, com toda a sociedade, diante da pandemia do novo Coronavírus, movimentos e organizações se uniram em torno da campanha “Mineração não é essencial, a vida sim!”.
Em um manifesto público, as entidades afirmam que “diferente do que muitos afirmam, a pandemia não é democrática. Seus impactos na saúde e na economia são sentidos de forma mais intensa sobre determinados grupos sociais. As desigualdades econômicas, sociais e políticas produzidas pela injustiça e pelo racismo fazem com que o nível de exposição à contaminação seja maior àqueles que não são dadas condições para pararem de trabalhar, que não têm acesso à água e saneamento ou moradia adequada ao isolamento, e que vivem cotidianamente expostos a riscos ambientais e de saúde. Quando adoecem, tampouco contam com um sistema de saúde e proteção universal”.
O documento destaca que “a mineração é um setor extremamente insalubre. A exposição a metais pesados e substâncias radioativas e perigosas presentes na composição mineralógica ou utilizadas no processo de extração e beneficiamento torna os trabalhadores e a população das comunidades do entorno mais suscetíveis a desenvolverem os sintomas mais graves da doença, em virtude de problemas respiratórios e outros preexistentes relacionados à atividade”.
Dessa forma, a campanha exige a suspensão da Portaria 135/GM, do Ministério de Minas e Energia, e do Decreto 10.329/2020, que declara o setor da mineração como essencial, em respeito à vida dos trabalhadores, das comunidades atingidas e da sociedade como um todo. “Que os salários dos funcionários diretos e terceirizados sejam integralmente mantidos e que os impostos devidos do setor sigam sendo recolhidos”, defende.
“Portanto, antes de tomar uma decisão que coloca em risco a saúde de trabalhadores e suas famílias, o governo deveria promover um amplo debate a fim de planejar uma redução controlada e temporária da atividade mineradora. Igualmente, deveria coordenar uma política que regule os estoques, estabeleça escalas e ritmos de extração, planos remunerados de capacitação e reciclagem dos trabalhadores que ficassem em casa, apoio às pequenas e médias empresas mineradoras e o controle da mineração ilegal”, finaliza.