Camponeses e oleiros [fabricantes de tijolos] dos bairros Primeiro de Maio e Catete, que perderam o acesso ao Rio Moatize devido à expansão da mina da Vale (Moatize III) em 2019, estão exigindo da empresa e do governo uma justa compensação pela perda da terra, do acesso à água e dos seus meios de subsistência, até agora sem sucesso. A Vale afirmou em março deste ano que não devia nada a estes grupos. Entretanto, já reconhece que terá que pagar uma compensação, mas o processo vai se arrastando. No dia 6 de maio de 2021, estes oleiros e camponeses ocuparam a Seção 6 da mina da Vale e bloquearam a rodovia mineira, evento relatado pela JA! num artigo recente. O que aconteceu neste dia e principalmente no dia seguinte, 7 de maio, convida-nos a uma profunda reflexão sobre a forma como a empresa Vale e o nosso governo estão lidando com esta questão. Para isso trazemos um relato em primeira pessoa de um dos membros da comissão de camponeses de Nhantoto, o senhor Fernando Botão.
“Começamos a dizer aos motoristas para irem arrumar as viaturas e as máquinas, não circularem naquela via, para pelo menos a Vale vir nos esclarecer sobre o que nós estamos exigindo. Porque desde que fomos paralisados nas nossas atividades, não fomos assistidos nem recebemos nenhuma assistência alimentar.”
A paralisação durou grande parte desse dia e, segundo os oleiros, só terminou quando lhes foi assegurado, por representantes da empresa e do governo, que no dia seguinte iriam se reunir com a Vale e o governo do distrito de Moatize, no bairro Primeiro de Maio.
Fadiga e frustração
- Esta paralisação e exigência dos grupos afetados pela Vale surgem num contexto de fadiga e frustração por várias razões, entre elas:
- o deteriorar das condições de vida de muitas destas famílias, anteriormente sustentadas pela fabricação de tijolos e agricultura de subsistência;
- as dificuldades de comunicação com a empresa, pois embora esta tenha insistido por algum tempo que este grupo de oleiros faz parte do grupo previamente compensado pela empresa em 2018, os oleiros e camponeses de Primeiro de Maio e Catete têm tentado explicar que são um grupo distinto, só foram afetados em 2019 devido à mais recente expansão da mina Moatize III;
- o arrastar das reuniões entre as comissões dos oleiros e camponeses, governo e Vale ao longo dos últimos 2 anos, sem que se chegue a uma solução para este problema;
- a informação e desinformação a respeito do desinvestimento da Vale em Moçambique, gerando preocupações a respeito das inúmeras pendências que a empresa ainda tem com as comunidades reassentadas e afetadas pela mina;
- o aumento de conflitos entre os membros das comissões de oleiros e camponeses e respectivas comunidades, onde são acusados de não conseguir resolver os assuntos da comunidade, e de estarem negociando “em benefício próprio”, uma vez que as comunidades não vêem qualquer resultado proveniente destas negociações.
Por estas e outras razões, a comunidade em conjunto com as suas comissões de oleiros e camponeses fizeram uma exigência bastante simples, clara e legítima: que a Vale e o governo fossem ao seu encontro, no seu bairro, e falassem com toda a comunidade, sem intermediários e sem representantes das comissões.
No relato do senhor Fernando podemos ouvir com algum detalhe como foi a ocupação no dia 6 de maio, e o que aconteceu no dia seguinte, 7 de maio, quando os oleiros, camponeses e moradores dos bairros Primeiro de Maio e Catete se juntaram à espera da reunião combinada no dia anterior, na grande praça do bairro Primeiro de Maio, em frente ao antigo Comando Policial da CARBOMOC.
Quem veio foi a polícia
“Da maneira que nos cercaram (a polícia), nós não sabíamos de nada, estávamos pensando que talvez tivessem vindo proteger o terreno para quando a senhora administradora chegar ver que o local já está protegido”, contou o senhor Fernando ao descrever o momento da chegada da polícia ao local combinado para a reunião.
Mas a polícia não vinha escoltar ninguém. Nem a Vale e nem o governo distrital compareceram ao encontro no dia 7 de maio. As várias viaturas da polícia de proteção e da Unidade de Intervenção Rápida (UIR), que o senhor Fernando julgava serem escolta, rodearam os moradores do bairro e, pouco depois, a comunidade relata que agentes da UIR começaram a abordar as pessoas, ordenando-lhes de forma intimidatória que dispersassem, caso contrário – em suas próprias palavras – iriam “mudar de cor”.
“Eu disse ‘senhor (polícia), não pode amedrontar essa senhora, porque aqui não estamos em Cabo Delgado, nós não temos material bélico”, relatou ainda o senhor Fernando, descrevendo uma troca de palavras com um agente de segurança que ameaçava uma moradora.
Foi então que os agentes da UIR resolveram usar gás lacrimogênio e disparar balas de borracha para dispersar a aglomeração. Há dezenas de relatos de pessoas que desmaiaram ou tiveram problemas respiratórios, incluindo crianças e recém-nascidos. Segundo testemunhas, a polícia chegou mesmo a lançar bombas de gás lacrimogênio para dentro das casas onde as pessoas se refugiaram. Um cidadão foi atingido por uma bala de borracha e precisou ser hospitalizado durante vários dias. Pelo menos 6 cidadãos foram levados para a esquadra sem qualquer acusação contra eles, 2 deles tendo permanecido detidos até ao dia seguinte. Algumas pessoas relataram também à JA! o uso de armas de fogo, sugerido também por alguns incêndios no bairro provocados pelos disparos da polícia. As crianças que estudavam naquele momento na Escola Primária Completa de Primeiro de Maio tiveram que abandonar as aulas, e muitas ficaram perdidas das suas famílias durante várias horas.
O que justifica esta violência policial? Que interesses defende a polícia e a UIR? É inaceitável o uso da força para reprimir manifestações pacíficas, um direito salvaguardado pela nossa constituição, e fundamental no exercício da democracia em vigor no nosso país.
Quando questionada a respeito dos eventos ocorridos em 7 de maio, a administradora do distrito de Moatize declarou à JA! que não teve conhecimento de nada do que aconteceu naquele dia, – nem mesmo a respeito da atuação da polícia – até cerca de 2 ou 3 dias depois, acrescentando ainda que durante todo o dia 7 de maio esteve no seu gabinete à espera da reunião com as comissões de oleiros e camponeses de Primeiro de Maio. Isto demonstra, no mínimo, um grande desleixo ou falta de competência tendo em conta que até mesmo o Presidente do Conselho Municipal de Moatize se encontrava no bairro Primeiro de Maio durante o ocorrido. E por que razão os representantes da Vale não apareceram nesse dia, e nem se justificaram perante a população – ainda mais tendo em conta as inúmeras vezes que as forças policiais já intervieram em Moatize para defender os interesses da mineradora?
A VALE é conhecida por conduzir processos de negociação prolongados e não inclusivos como forma de enfraquecer as reivindicações das comunidades afetadas
É importante frisar aqui que esta estratégia de alongar processos, extenuar os afetados e prolongar as negociações excluindo grande parte das pessoas afetadas é prática da Vale S.A. em muitos dos territórios onde opera. Faz parte de uma estratégia mais ampla de fugir das suas responsabilidades e tentar repassar as suas dívidas para com a sociedade e a natureza para o Estado, aproveitando dissimuladamente as brechas e fraquezas institucionais existentes em frágeis e cooptáveis democracias como é a nossa em Moçambique. Nem será preciso dizer, por já estar tão amplamente documentado e analisado, que além de todos os reassentamentos injustos e destruição ambiental, a Vale Moçambique conseguiu ainda ter uma péssima contribuição em aspectos como receitas fiscais, emprego gerado, redução da pobreza e desigualdade, que eram algumas das grandes bandeiras hasteadas quando o contrato de exploração foi assinado.
Ora, tendo em conta que a Vale se prepara para vender as suas minas de Moatize e o projeto do Corredor de Nacala – e justamente quando termina o seu período de bonança em termos de regalias e isenções fiscais – todos estes problemas pendentes deveriam estar soando os alarmes de Moçambique como país, mas por enquanto parece que apenas os mais diretamente afetados pela empresa estão vendo a urgência da situação.
A qualquer momento, a Vale poderá encontrar um comprador que seja inconsequente o suficiente para investir num negócio obsoleto como o carvão – e, caso o encontre, com certeza fará o possível para minimizar qualquer pendência que tenha com as comunidades locais ou com o país. Tal investidor, por outro lado, tampouco se preocupará com as casas de reassentamento que ficaram por ser reabilitadas, com as famílias que ainda esperam pela terra para plantio, ou com os oleiros que esperam o desfecho de infindáveis negociações.
Não estamos aqui meramente especulando – isto é, na verdade, exatamente o que a Vale fez com o seu projeto na Baía de Sepetiba, no Brasil, quando o vendeu à empresa Ternium. Os moradores foram apanhados de surpresa com a súbita venda do projeto, e hoje nem a Vale e nem a Ternium se responsabilizam pelos enormes prejuízos deixados para trás.
Um caminho radicalmente diferente é necessário – e urgente
É urgente acima de tudo começarmos a ser capazes, como país, de encontrar formas ambiciosas e sistêmicas de resolver os problemas enfrentados pela maioria do povo Moçambicano. De encontrar outra forma que não a repressão e a violência para lidar com cidadãos descontentes e frustrados que decidem protestar por qualquer motivo que seja, independentemente se este motivo é conveniente ou não. Sermos capazes de captar pesados impostos de qualquer grande ou mega empresa que opere em Moçambique, para os investirmos em serviços públicos de qualidade para todos, de forma a reduzir as tensões sociais típicas de uma população extenuada ao limite. Garantir a real participação e protagonismo das pessoas que estão na linha da frente dos impactos trazidos pelas minas de carvão, pelas grandes indústrias, pelas plantações industriais, pelas mega-barragens, para que sejam estas a definir o que é uma compensação justa pelas suas terras e territórios.
Não podemos aceitar que as nossas leis ou belos tratados internacionais de direitos humanos ratificados tenham a simples função de embelezar os nossos discursos perante os doadores ou a ONU – estes direitos precisam ser sentidos na pele, no dia a dia, por todos os moçambicanos. É urgente condenarmos e recusarmos veementemente qualquer forma de governar que oprima e reprima cidadãos que sejam contrários ao atual modelo de país, em prol da manutenção dos ostensivos privilégios de uma elite cada vez mais rica, impune e criminosa.
Precisamos, acima de tudo, repensar os nossos caminhos para o futuro antecipando erros que já cometemos antes. Podemos aprender muito com a venda da mina da Rio Tinto para a ICVL, com todos os problemas que persistem em Capanga, Benga e no reassentamento de Mualadzi até hoje, e não permitir que a Vale nos faça o mesmo. Podemos inclusive aprender com tudo aquilo que o carvão prometeu ser e não foi, e não permitir que o gás nos faça o mesmo.
Recordemos que a Vale, quando assinou o contrato mineiro com o governo de Moçambique em 2007, estimou que o seu projeto teria uma vida de cerca de 35 anos – isto significa que, pelos seus cálculos, haveria mercado internacional para o carvão até 2042. Hoje, apenas 14 anos depois, muita gente já consegue ver o ridículo dessa projecção. Quando é que vamos entender que acreditar nas projeções feitas pelas empresas de combustíveis fósseis, ou por organizações de pesquisa por elas financiadas, é uma armadilha para qualquer Estado? Vamos continuar acreditando que o gás – esse sim – vai conseguir desenvolver Moçambique?
As histórias que os megaprojetos por Moçambique afora nos contam não são histórias de emprego, empoderamento ou qualidade de vida, e sim de empobrecimento, desesperança e conflito social. As histórias que nos chegam do capitalismo neoliberal mundo afora tampouco são de solidariedade ou independência. A crise climática, o aumento da desigualdade, as sistemáticas violações de direitos humanos ou o autoritarismo crescente são resultados inevitáveis de um sistema sócio-econômico que recompensa os atores empresariais pelo seu compromisso absoluto com o lucro, independentemente do que poderão ser as consequências que venham daí. É um modelo que cada vez mais descaradamente nos mostra para que serve: para o enriquecimento das elites do capital global, com a cumplicidade das nossas elites nacionais.
Para enfrentar os tempos e crises que vêm precisamos de um novo paradigma, um que acabe com a devastação da natureza pelo homem e restabeleça o controle da terra por parte das comunidades locais, priorizando o uso consciente e coletivo dos recursos, inclusive pelas próximas gerações. Um paradigma que contribua para a formação de cidadãos motivados para agir em defesa do próximo através de um Estado competente e orientado para servir o povo, valorizando e fortalecendo a nossa diversidade. Um paradigma que não permita que uma mina de carvão ou um projeto de gás sejam mais importantes que a paz e justiça de um povo inteiro.
Precisamos de mudanças radicais sim, e não podemos continuar permitindo que o atual modelo sócio-econômico nos limite até a capacidade de imaginar um modelo diferente. Em muitos lugares do mundo, e até de Moçambique, isso já está acontecendo, em micro manifestações de resistência e transformação social que são largamente reprimidas ou não devidamente valorizadas. Precisamos dar espaço para estes novos paradigmas proliferarem.
“A política, nos nossos tempos, deve partir do imperativo de reconstruir o mundo em comum”, defende o filósofo e intelectual camaronês Achille Mbembe. É urgente começarmos a trilhar este caminho, porque já se faz tarde e as coisas não estão melhorando.
Assista abaixo o relato completo do senhor Fernando Botão.