Um mês após Brumadinho: a tragédia invisível dos deslocados internos

Tragédia serve como um lembrete de que o desenvolvimento sustentável requer planejamento e respeito pela vida humana

A destruição causada pelo rompimento da barragem da mina Córrego do Feijão, em Brumadinho, completou um mês em 25 de fevereiro. E ela vai muito além do número elevado de mortes. Provocou também o deslocamento forçado de 24 mil pessoas e um impacto ambiental de dimensões ainda incalculáveis. Não se sabe quando – ou se – essas pessoas poderão retornar aos seus lares.

O deslocamento forçado de pessoas não resulta apenas do rompimento de barragens. As causas vão da construção de infraestrutura de grande porte, como hidrelétricas e rodovias, a desastres, como enchentes, enxurradas e deslizamentos. O Observatório de Migrações Forçadas, do Instituto Igarapé, estima que, desde 2000, pelo menos 7,7 milhões de brasileiros – cerca de 4% da população do país – tiveram que deixar seus lares em função de desastres (cerca de 6,4 milhões) e projetos de desenvolvimento (1.3 milhão). E é provável que o número real seja consideravelmente maior. Há resistência no compartilhamento de informações sobre o impacto negativo de empreendimentos e ausência de dados sistematizados sobre o deslocamento provocado pela violência.

Esses deslocamentos não são fato isolado; o Brasil tem um longo histórico de projetos que expulsaram comunidades inteiras.  A usina hidrelétrica de Itá, uma das maiores no Brasil, produziu nada menos que 10 mil deslocados em 11 municípios de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, ao longo do Rio Uruguai. O município de Itá, com cerca de 7.000 habitantes, foi completamente submerso, e a empresa responsável pela instalação da usina precisou reconstruir a cidade em um local mais alto, fora do alcance do reservatório. Apesar do programa de reassentamento, muitos habitantes, especialmente pequenos agricultores, sofreram perdas irreparáveis.

Com frequência, populações mais afetadas são as mais vulneráveis. Em Mariana, onde  1.361 pessoas perderam suas casas, o rompimento da barragem atingiu 126 famílias do povo Krenak; em Brumadinho, a aldeia indígena Pataxó Hã-hã-hãe  foi afetada pelos rejeitos de minério de ferro que contaminaram o rio Parauapebas, comprometendo a pesca; em Belo Monte, no Pará, estima-se que 30 mil indígenas foram forçadas a abandonar suas terras às margens do rio Xingu. Apesar da gravidade, o tema recebe pouca atenção. Ironicamente, o número de deslocados internos no Brasil é muito maior que o total de refugiados e solicitantes de refúgio no país desde 2000.

Enquanto Colômbia e o Peru destinam políticas públicas específicas de renda e moradia para os deslocados internos, o Brasil não reconhece oficialmente o fenômeno. Medidas como os programas de indenização e o ”aluguel social” para deslocados por desastres naturais, obras do Programa de Aceleração do Crescimento e em resposta a calamidades públicas são temporários e restritos a alguns estados. Nessa lacuna deixada pelo Estado, a sociedade civil brasileira atua de forma a minimizar as consequências do deslocamento forçado. O impacto social da construção da hidrelétrica de Itá levou à criação do Movimento dos Atingidos por Barragens, que oferece apoio às vítimas, cobra punições aos crimes ambientais e exige políticas mais concretas do governo para a indenização das famílias atingidas por tragédias como a de Brumadinho.

É urgente que o Brasil estabeleça uma resposta abrangente à crise de deslocamento forç̧ado. Milhões de brasileiros são afetados. E isso deve se intensificar em função da mudança climática. As autoridades públicas brasileiras devem criar um sistema unificado de gerenciamento de dados para monitorar a escala, a evolução e a distribuição do deslocamento forçado em território nacional. Também é preciso estabelecer compromissos e atribuições por parte do setor privado na prevenção e resposta à migração involuntária. A atuação transparente e responsável de empresas deve não apenas ser exigida como efetivamente monitorada pelo poder público, em colaboração com a sociedade civil. Isso inclui mecanismos mais robustos para minimizar o deslocamento quando da construção dos projetos.

As pessoas atingidas, por sua vez, devem ser empoderadas para negociar indenizações e obter serviços adequados durante processos de realocação e reassentamento. Canais formais e institucionalizados de capacitação e participação popular são necessários.  Por fim, é́ fundamental que o Brasil reconheça oficialmente o deslocamento interno, para que políticas mais abrangentes, integradas e multidimensionais possam ser elaboradas. Os órgãos da área social e de direitos humanos precisam estar plenamente envolvidos, de maneira a garantir que necessidades específicas de diferentes grupos populacionais sejam respeitadas. Isso só será possível por meio de uma sensibilização de gestores públicos e da promoção de um diálogo interinstitucional, que inclua a sociedade civil e tenha, como prioridade, a garantia dos direitos das pessoas deslocadas.

A tragédia em Brumadinho serve como um lembrete de que o desenvolvimento sustentável requer planejamento e respeito pela vida humana. A transparência, a fiscalização e a responsabilização sobre os impactos adversos de empreendimentos são compromissos que os três poderes brasileiros deveriam levar mais a sério.

Adriana Erthal Abdenur é coordenadora da Divisão de Paz e Segurança do Instituto Igarapé Maiara Folly e Lycia Brasil são pesquisadoras do Instituto Igarapé

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